"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Os libertinos. A Antiguidade em lugar do Cristianismo (Parte 4)

A lição de amor, Jean-Antoine Watteau

Mais grave talvez do que todos esses ataques é o fato de a Antiguidade fornecer o meio de dispensar o cristianismo. Deseja alguém dirigir uma casa, educar filhos? Eis Xenofonte. Governar? Há Aristóteles, Platão, Tácito. Conhecer as leis do Universo? Que leia Plínio, Lucrécio. Instruir-se acerca dos limites entre a natureza e o milagre? Cícero escreveu o De divinatione. Refletir sobre a imortalidade da alma? Aí estão o Fédon e o Sonho de Cipião. Sobretudo os Antigos proporcionavam doutrinas que permitiam ao homem bastar-se a si próprio para enfrentar as dificuldades, as penas, as angústias da vida, doutrinas onde a razão soberana dita os atos que uma vontade livre executa. Para Epicuro, a felicidade constitui-se de dois estados: "Corpo sem dor, alma sem inquietação". Estes dois estados são a voluptuosidade, objetivo essencial de nossa natureza, primeiro bem do homem. A razão sã dita os objetos e as opiniões que é preciso evitar ou procurar a fim de atingir tais estados. A razão levar-nos-á a rejeitar grandes prazeres, se maiores penas devem segui-los, ou a aceitar grandes e prolongadas penas, se prazeres hão de acompanhá-las. A razão mostrar-nos-á que a frugalidade, a honestidade, a justiça nos conduzem aos estados de onde surge a voluptuosidade, que a felicidade e a virtude formam duas irmãs inseparáveis. A moral do prazer convertia-se, assim, num prudente cálculo utilitário. [...]

Outros preferiam os estóicos, Epicteto, Sêneca, cujo estoicismo se matiza de epicurismo. Existem coisas que dependem de nós, a opinião, o querer, o desejo, a aversão e, em geral, os nossos julgamentos e as nossas representações. Somos os seus amos. Nossa imaginação nos dá o poder de representar as coisas no espírito, de vê-las como boas ou más, de desejá-las ou rejeitá-las, de suportá-las ou repeli-las. A faculdade de julgar e querer é absolutamente livre.

Existem coisas, entretanto, que não dependem de nós, o corpo, os bens, a reputação, a dignidade. Elas nos são estranhas. Dependem dos outros.

Se desejamos aquilo que só depende de nós, isto é, bem julgar e conformar nossa vontade ao nosso julgamento, seremos felizes, pois a felicidade consiste em obter o que desejamos.

Os estóicos não eram raros entre os magistrados e os fidalgos. Até um religioso pediu que o amortalhassem com um volume de Sêneca do qual jamais se separara. Mais numerosos, contudo, eram os epicuristas. O epicurismo transformou-se facilmente num utilitarismo que comprazia ao espírito burguês. [...]

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 340-341. (História geral das civilizações, 9).

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