"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 22 de outubro de 2016

O eterno par de Alexandre Magno: o amante desprezado (Parte 2)

Busto de Alexandre Magno. Escultura helenística. Artista desconhecido

Ambos os amigos já tinham passado dos vinte anos, o que, segundo os costumes gregos, extinguia a licença para brincar com o mesmo sexo. Estava na hora de assentar e procurar esposa. Alexandre, para ganhar tempo, ligou-se a uma amante persa chamada Bactrina. Heféstion passou discretamente a segundo plano não só na alcova do amigo, mas também pelas inócuas tarefas diplomáticas que este lhe atribuiu para o manter afastado.

Alguns autores registram um eventual ressentimento de Heféstion por essa indiferença do seu chefe e amante, que o teria levado a protagonizar um acto suspeito de deslealdade. O seu erro consistiu em receber um enviado de Demóstenes quando Alexandre se encontrava no Egipto. O político ateniense, entre outros assuntos, era um declarado inimigo de Alexandre e forte crítico do imperialismo macedônio, que provavelmente estava ao corrente do afastamento de Heféstion. A sua intenção não podia ser outra senão convencê-lo a revoltar-se contra Alexandre, obedecendo a um plano que Demóstenes urdia com outros chefes descontentes. Pelo menos foi o que disse mais tarde o mensageiro, embora não exista qualquer registro de que Heféstion tivesse aceitado juntar-se à conspiração, nem de que Demóstenes estivesse envolvido com a verdadeira conspiração que aconteceu em 330 a.C.

Nesse ano, um grupo de oficiais revoltou-se, mas foi rapidamente reprimido pelos chefes leais a Alexandre. Contudo, dois chefes das falanges da infantaria, Crátero e Ceno, acusaram Filotas, comandante-geral da cavalaria, de conhecer as intenções dos rebeldes e de não o ter revelado ao imperador. Numa primeira fase, Alexandre não deu importância ao assunto, mas Heféstion uniu-se aos denunciantes para exigir que o acusado fosse interrogado sob tortura. E Alexandre, que não quis infligir nova humilhação ao seu velho amigo, aceitou contrariado essa exigência. O tal Filotas, filho de outro brilhante general macedônio chamado Parmênion, era o comandante mais aguerrido e a sua cavalaria tivera um papel decisivo nos combates que proporcionaram a glória e o poder a Alexandre. Não era de estranhar, por isso, que os dois comandantes de infantaria e um amante desprezado o quisessem ver humilhado, torturado e, se possível, condenado à morte.

Os cronistas não descrevem o tipo de tortura a que foi submetido Filotas, mas o pobre homem acabou por confessar que ele e o seu pai tinham organizado a revolta para ocupar o trono e o comando supremo, no lugar do imperador. O tribunal militar montado por Alexandre sentenciou a execução imediata do réu e Parmênion foi também assassinado após a sua captura pelos homens enviados para o perseguir. Independentemente da verdade desta história, o imperador decidiu que era melhor não alimentar as ambições dos seus subordinados com demasiado poder. E, por via das dúvidas, dividiu a prestigiosa cavalaria em duas partes. Uma ficou sobre o comando do eficiente general Clito e entregou a outra como prêmio a Heféstion, totalmente inexperiente no comando deste tipo de tropa.

Durante os três anos seguintes, batalhou-se pela conquista da Bactriana e da Sogdiana, onde os cavaleiros desempenharam um papel fundamental. Os correspondentes de guerra da época elogiam Clito repetidamente, mas não citam Heféstion uma única vez. Segundo parece, porque Alexandre, que nunca confiou nas aptidões guerreiras do seu amigo, entregou a outro chefe o comando efectivo dos combatentes cavaleiros. E, por fim, a sorte favoreceu Heféstion, porque durante um festim o imperador matou Clito sem qualquer motivo numa discussão de bêbados e ele acabou por comandar a cavalaria.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 47-8.

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