"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: os movimentos heréticos

Cena noturna da Inquisição, Francisco de Goya

No século XI, os movimentos denominados heréticos pela Igreja coincidem com as mudanças que ocorriam na época, entre elas o esforço dos chefes de famílias nobres para controlar o casamento, a renovação católica e a degradação da condição feminina.

Podemos ver nesses movimentos uma reação dos oprimidos por essas mudanças: filhos deserdados, mulheres que tinham seus direitos desrespeitados pelos homens, camponeses abastados que começaram a ser explorados por senhores feudais, clérigos que não concordavam com as imposições dos seus superiores, populações urbanas que queriam se livrar das imposições dos senhores.

Os cristãos, leigos e clérigos, que contestavam radicalmente o casamento, considerando-o um impedimento à salvação, encontravam apoio nas práticas monásticas tradicionais, que davam prioridade à vida em comunidade, à castidade e à obediência. Todavia, contrariavam o projeto de trazer o casamento para a esfera religiosa, de tornar sagrada a união matrimonial, para controlar melhor a sua prática.

Em muitas comunidades heréticas, as mulheres eram tratadas como iguais, abolindo-se as diferenças entre os sexos e colocando como ideal para ambos a pureza dos anjos. Esses puros eram um pequeno número, mas atraíam muitos simpatizantes. Aderir aos grupos heréticos era uma forma de reagir contra a intervenção da Igreja nas regras matrimoniais do povo. No fundo significava um protesto contra os privilégios do clero. Os hereges julgavam o clero inútil.

Como costuma acontecer com os movimentos contestadores da ordem, a heresia, perseguida e destruída, deixou pouca memória. Seus vestígios são encontrados na palavra dos vencedores, dos que a condenaram e destruíram.

As vozes dos vencedores procuraram ligar a heresia à mulher, ser que, na visão católica, era envenenador, instrumento de Satanás, eterna Eva que levava à perdição.

Como muitos hereges recusavam o casamento e o sexo, foram taxados pelos membros da Igreja como hipócritas e mentirosos. Na verdade, diziam os clérigos, praticariam a comunidade sexual, tendo relações com a mulher que estivesse mais próxima, fosse sua mãe ou irmã. Os filhos dessas relações monstruosas seriam queimados em rituais etc. Conhecemos, portanto, as vozes dos que venceram as heresias, mas muito pouco as dos vencidos.

Os bispos da Igreja venceram as heresias e acomodaram os seus interesses aos das altas linhagens nobres. Disso resultou um modelo de casamento e de comportamento sexual que se estabeleceu solidamente na sociedade feudal.

Esse modelo dava ao cristão apenas duas maneiras de lidar com a sexualidade. Como cônjuge, na moderação das relações matrimoniais - seguindo as normas e proibições -, e como dirigente da Igreja, renunciando ao sexo. O casamento seria uma proteção contra o mal.

O convento passou a ser refúgio das esposas repudiadas e das mulheres sem marido, ajudando a resolver a questão da bigamia e a do repúdio à esposa.

A acomodação entre a sociedade e a doutrina da Igreja sobre o casamento trouxe também a aceitação implícita da diferença entre o ensinamento e a prática.

A repressão ao sexo se afrouxava quando os laços do matrimônio não estavam em questão. O pecado era perdoado pela penitência, uma para cada tipo de falta. O pecador reafirmava a sua submissão à Igreja aceitando a penitência. Dava também uma satisfação à sociedade pelo seu erro. A sua prática contribuía, então, para a ordem social.


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 231-232.

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