"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Sexo e casamento na Idade Média (Parte 2)

Casamento de D. João I e Filipa de Lencastre. Chronique de France et d' Angleterre, Jean Wavrin, século XV

Em terceiro lugar, trata-se de união indissolúvel. Ao contrário dos vários tipos de aliança conjugal na Roma antiga, onde a separação do casal podia ocorrer sem maiores formalidades, o casamento cristão em tese só se desfaz com a morte de uma das partes ("não separe o homem o que Deus uniu", Mateus 19, 6). A Igreja medieval aceitava, no entanto, a anulação do casamento quando ele não era fisicamente consumado por incapacidade de um dos cônjuges. Ou quando ele unira pessoas aparentadas (por sangue ou por afinidade, como padrinhos e madrinhas), o que feria o grande tabu do incesto, já presente no Antigo Testamento e que ganharia peso ainda maior na Idade Média. A literatura expressou esse forte sentimento contrário ao incesto, por exemplo, no relato de Filipe de Beaumanoir, por volta de 1230, La manekine, cuja heroína amputa a própria mão para afastar o desejo proibido de seu pai. Um casamento podia ainda ser desfeito por outros motivos (bigamia, traição feminina etc), dependendo da influência da parte interessada nisso.

Em quarto lugar, o casamento é exogâmico. Na tentativa de dificultar o incesto e de estimular a circulação das riquezas, impedindo sua excessiva concentração em poucas famílias, a Igreja determinou que os noivos não tivessem parentesco abaixo do sétimo grau. De fato, na aristocracia o casamento era um importante negócio, que afetava não apenas as pessoas diretamente envolvidas, mas todo o clã. Se a mulher era a herdeira dos bens patrimoniais de sua família, precisava de um marido para administrar o senhorio e ser responsável pelas relações feudo-vassálicas relativas àquela terra. Se ela não era a herdeira principal, ao se casar (geralmente aos 13 ou 14 anos) entrava para a família do marido e levava um dote que era uma antecipação de sua parte na herança. Na burguesia, muitos empreendimentos comerciais ou artesanais eram ampliados por meio de alianças matrimoniais entre duas famílias. No campesinato, um servo que se casava com mulher de outro senhorio devia determinada taxa por tirar mão de obra de seu senhor.

Qualquer que fosse a categoria social das pessoas, desde fins do século XI ou princípios do XII surgiu o ritual eclesiástico do casamento. Ele tornou-se obrigatório apenas no século XVI, com o Concílio de Trento, porém difundia-se cada vez mais desde a Idade Média Central. Seus componentes já então estavam bastante uniformizados. Sob o pórtico da igreja ocorriam os esponsais, uma troca de juramentos assistida pelo padre. Vinha a seguir o período dos banhos (geralmente de 40 dias), isto é, da publicação da intenção de casamento para que se verificassem eventuais impedimentos.

A cerimônia que selava o casamento dava-se no pórtico da igreja, com os noivos quase sempre vestidos de vermelho, coroados de flores, a moça com os cabelos soltos em sinal de virgindade ou com um véu ligeiro. Novamente se trocavam juramentos - prática presente em todos os aspectos da vida social medieval -, seguia-se a bênção do casal e a troca de anéis. Entrava-se depois na igreja para a bênção nupcial e a missa, a que os esposos assistiam cobertos por um mesmo véu. Iam depois até o altar da Virgem, ao qual ofereciam uma vela e onde, em algumas regiões, a noiva fiava por alguns instantes. Tudo era acompanhado por muitos padrinhos e madrinhas, testemunhos indispensáveis para uma época pouco ou nada acostumada ao registro escrito e oficial de atos importantes da vida social.

Saindo da igreja, os recém-casados e seus parentes iam até o cemitério rezar sobre os túmulos dos antepassados, que não podiam ficar excluídos de uma cerimônia central para a solidariedade familiar e o espírito do clã. Finalmente, os novos esposos iam para casa, onde os amigos jogavam sobre eles punhados de trigo, rito propiciatório que deveria estimular a fertilidade material e física do casal. Começava então a festa. No caso dos nobres, ela era suntuosa. mesmo porque o casamento da filha mais velha de um senhor feudal era um dos quatro momentos em que os vassalos deviam ajudá-la financeiramente. No caso dos burgueses, sempre desejosos de imitar o padrão de vida nobiliárquico, a festa também tendia a ser farta, dependendo, é claro, dos recursos das famílias. No caso dos camponeses, toda a aldeia, inclusive o senhor, participava das bodas.

O reconhecimento social de que aquelas duas pessoas formavam um casal e poderiam manter relações sexuais não lhes dava, porém, liberdade total para tanto. Determinados dias da semana (em especial o sagrado domingo) e certos períodos do ano (festas religiosas, sobretudo a Quaresma) estavam interditados ao sexo. Jean Louis Flandrin calculou que na Alta Idade Média cerca de 180 dias por ano eram liturgicamente proibidos para relações sexuais, sem contar os dias de menstruação, gravidez e amamentação, igualmente de abstinência. A transgressão era punida de forma variável conforme os locais e as épocas. mas a média girava em torno de 20 a 40 dias de penitência, jejum alimentar e/ou continência sexual. Ademais, o sexo deveria ser apenas vaginal, visando à procriação, a mulher colocada debaixo do homem e no escuro, para se evitar a visão da nudez. O sexo oral e sodomita, a magia para atrair o desejo de alguém, as práticas anticoncepcionais e abortivas, as relações incestuosas e adúlteras eram pecados duramente castigados: de seis a 15 anos de jejum e de excomunhão, geralmente acompanhados de interdição perpétua de qualquer relação sexual e de casamento.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 128-130.

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