"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Sexo e casamento na Idade Média (Parte 1)

Coito, Giovannino de' Grassi

Em uma sociedade tão fortemente penetrada pelos valores da Igreja, quer dizer, da comunidade cristã, muitas atividades anteriormente consideradas de foro pessoal passaram, pelo menos até o século XIII, a ser vistas como de interesse comunitário. Nesse processo de levar para a esfera pública as coisas privadas, o sexo foi talvez o mais atingido. Essa mudança de comportamento começara na verdade antes do cristianismo, com certas correntes filosóficas pagãs defendendo uma vida mais regrada, mais afastada dos prazeres materiais considerados animalizadores do ser humano. Como em vários outros aspectos, o surgimento do cristianismo respondia a essa demanda psicológica e comportamental da sociedade romana, daí seu sucesso. Tornado religião oficial em 392 e cada vez mais institucionalizado pela Igreja, já na primeira Idade Média o cristianismo pôde impor seus valores.

A vida sexual ideal passou a ser a inexistente. A virgindade tornou-se um grande valor, seguindo os modelos de Cristo e sua mãe. Vinha depois a castidade: quem já havia pecado podia em parte compensar essa falta abstendo-se de sexo pelo restante da vida. Os relatos hagiográficos de toda a Idade Média, sobretudo de suas duas primeiras fases, abundam em exemplos de santas que morreram para defender sua virgindade e de santos e santas que ao se converter ao cristianismo abandonaram a vida conjugal. No entanto, esse desprendimento não podia ser adotado pela maioria das pessoas. Era mesmo perigoso que gente sem o suficiente autocontrole tentasse levar uma vida de abstinência sexual. São Paulo já definira a questão no século I: "É melhor casar do que abrasar" (1 Coríntios 7,9). A vida sexual era possível para o cristão médio, desde que ocorresse nos quadros de uma relação definida e supervisionada pela Igreja, o matrimônio.

Contudo essa interferência eclesiástica na vida íntima dos fiéis não foi aceita com facilidade. Quanto mais recuados no tempo e mais afastados dos grandes centros clericais (sedes de bispado, mosteiros), mais os medievos puderam viver de forma "pagã", no dizer da Igreja. Os camponeses, em especial, superficialmente cristianizados até fins da Idade Média em várias regiões, quase sempre escapavam aquele controle. Os aristocratas, interessados em casamentos que garantissem bons dotes e grande prole para dar continuidade à linhagem e herdar o patrimônio fundiário da família, resistiram por muito tempo ao modelo de união sexual que a Igreja determinava. Mesmo os clérigos não aderiram de bom gosto ao celibato obrigatório imposto pela Reforma Gregoriana.

Assim, apenas ao longo do século XII, a Igreja pôde, com dificuldade, completar a definição da única modalidade aceitável de vida sexual cristã - o matrimônio, tornado um dos sacramentos. Ou seja, em primeiro lugar, uma relação heterossexual. Combatia-se. assim, a prática da bestialidade (sexo entre humano e animal), frequente no mundo antigo e no campesinato medieval. Uma tradição mítica interpretava o versículo bíblico no qual Adão, ao ver Eva, diz "desta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne" (Gênesis, 2, 23), como prova de que ele anteriormente fazia sexo com animais. as únicas companhias que tivera até então no Éden. O casamento cristão combatia especialmente a homossexualidade, o pior pecado sexual possível, por visar apenas ao prazer e não à procriação, como Deus determinara ao primeiro casal: "Sejam fecundos e multipliquem-se" (Gênesis, 1, 28). Outra passagem bíblica, muito citada pelo clero medieval, comprovava o horror ao homossexualismo, difundido em Sodoma e Gomorra, cidades por essa razão destruídas por Deus com enxofre e fogo (Gênesis, 18, 20-21; 19, 1-29).

Em segundo lugar, o matrimônio é uma relação monogâmica. Por um lado, isso atendia a um dado da mentalidade medieval, fascinada pela Unidade cosmológica, talvez como forma compensatória à grande diversidade da realidade concreta do Ocidente, dividido em vários reinos, milhares de feudos, dezenas de línguas e dialetos, diferentes liturgias (apenas com a Reforma Gregoriana tentou-se impor o rito galicano-romano a todas as regiões, o que demoraria a se concretizar). Assim, idealmente, ao Deus único deveria corresponder uma só Igreja, uma só fé, um Só governante secular. Por outro lado, a monogamia respondia a uma lenta, mas inegável transformação na sensibilidade coletiva - que a Igreja soube reconhecer e tornar lei - pela qual se passava a ver a essência do casamento no consentimento mútuo dos noivos. Isto é, a união deveria ser construída a partir do afeto recíproco, e não apenas de interesses políticos ou patrimoniais. Ora, com base no afeto conjugal, que é único (como o dirigido aos pais e a Deus), concluiu-se pela exigência de um único parceiro.

FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 126-128.

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