"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 5 de abril de 2016

A resistência dos operários ingleses no século XIX: a luta pelos direitos

Uma noite de greve / Bandeira vermelha, Eugène Laermans

Os trabalhadores não aceitavam passivamente as condições de trabalho que lhes eram impostas e, com o apoio de alguns intelectuais, lutaram para obter melhorias que consideravam justas - como, por exemplo, uma jornada mais curta. Organizando-se em associações e sociedades, tentaram levar suas reivindicações ao Parlamento.

O sapateiro Thomas Hardy, um dos fundadores da Sociedade Londrina de Correspondência inaugurada em 1792, assim rememora uma das reuniões de seus membros:

"Após terem jantado pão, queijo e cerveja, como de hábito, e fumado seus cachimbos, com um pouco de conversa sobre a dureza dos tempos e o alto preço de todas as coisas necessárias à vida [...] veio à tona o assunto que ali os reunia - a Reforma Parlamentar -, um tema importante a ser tratado e liberado por tal tipo de gente." (Apud E. P. Thompson, op. cit., p. 16.)

A participação no Parlamento era importante para garantir direitos de cidadania aos trabalhadores. Diferentemente da ação das turbas, cuja atuação era ocasional, essas organizações promoviam discussões regulares dos temas políticos e econômicos da época. Apesar da constante repressão do governo sobre os reformadores, que se reuniam na clandestinidade, até 1824 as associações de trabalhadores cresceram de maneira expressiva.

Na primeira década do século XIX, a Inglaterra não era ainda uma democracia, tal como a entendemos hoje. Apesar do desenvolvimento econômico que alcançara, os direitos políticos continuavam restritos a uma minoria. A maior parte das pessoas não podia votar, e muitas das cidades que se haviam formado com o processo de industrialização não tinham o direito de ser representadas no Parlamento. Os trabalhadores também não podiam eleger representantes - por isso frequentemente recorriam aos motins e protestos de rua para expressar suas reivindicações. E, por fim, o Parlamento, composto pela Câmara dos Lordes e pela Câmara dos Comuns, defendia somente os interesses dos aristocratas e dos ricos comerciantes.

[...]

Diversas pessoas, na época, acreditavam que as máquinas fossem a causa do desemprego e dos baixos salários. Em 1812, trabalhadores liderados por Ludd, um aprendiz de Midland, destruíram a maquinaria têxtil e revoltaram-se contra os patrões e o sistema de trabalho na fábrica, dando início a um movimento de luta contra as mudanças nas técnicas produtivas. Apavorados com os atentados à propriedade, os membros do Parlamento impuseram medidas repressivas contra as organizações de trabalhadores, tentando vencê-los com a ameaça da força. Como a destruição das máquinas não resolvia seus problemas, os trabalhadores, por sua vez, partiram em busca de outras estratégias.

A greve dos mineiros de Pas de Calais, 1906, Le Petit Journal

Inúmeras petições foram sendo enviadas ao Parlamento, contendo reivindicações de melhores salários e jornadas mais curtas. Algumas concessões foram feitas, mas como nem sempre eram postas em prática os trabalhadores passaram a organizar-se em favor do direito de voto, a fim de eleger seus próprios representantes.

Ao final das guerras napoleônicas, os ingleses que haviam lutado retornavam ao seu país e não encontravam emprego nas indústrias, o que aumentou ainda mais a tensão social. Em Saint Peters Fields, perto de Manchester, reformistas radicais se reuniram em 1819 para discutir mudanças na legislação eleitoral. A polícia interrompeu a reunião e muitos dos participantes sofreram dura repressão; alguns foram mortos, outros, feridos.

Em 1832 o Parlamento ampliou o sufrágio para 200 mil votos, dobrando o número de eleitores. Os trabalhadores, entretanto, continuaram excluídos do processo eleitoral, o que os levou a unirem-se às camadas médias da sociedade inglesa, iniciando revoltas para exigir representação parlamentar. Esse movimento de rebeldia, conhecido como cartismo (1830-1840), reivindicava sufrágio universal para os homens, votação secreta, remuneração dos membros eleitos para a Câmara dos Comuns a fim de que os deputados pobres pudessem se manter, renovação anual do Parlamento, igualdade entre os distritos eleitorais e fim da exigência de propriedade para os candidatos. Exceto a renovação anual do Parlamento, todas as outras exigências aos poucos foram sendo atendidas, e o movimento cartista extinguiu-se.

Greve, Stanislaw Lentz

A via eleitoral não assegurava, em absoluto, melhores condições de vida para os trabalhadores. Na segunda metade do século XIX, o movimento dos trabalhadores tomara outros rumos. O sindicalismo surgiu como força de organização da classe trabalhadora, possibilitando a formulação de novas estratégias na luta pela conquista de direitos. Em 1824, foi votada uma lei que dava aos operários o direito de livre associação, favorecendo a legalização das associações clandestinas.

As organizações de trabalhadores se espalharam pela Inglaterra, dotando os operários de um grande poder de negociação. Engels afirma, em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, que "os seus fins eram fixar o salário, negociar em massa, enquanto potência, com os patrões, regulamentar salários em função do lucro do patrão, aumentá-lo na altura propícia e mantê-lo ao mesmo nível para cada ramo do trabalho".

As reivindicações incluíam também uma escala de salário que deveria ser respeitada em toda a Inglaterra e um limite à admissão de aprendizes, a fim de evitar concorrência com os operários qualificados e, assim, a redução dos salários.

Fazia parte da elite inglesa a chamada burguesia evangélica, que tentava difundir seu ideal de vida familiar estável tanto entre os aristocratas quanto entre os operários. Nessa família burguesa idealizada, o espaço de atuação da mulher restringia-se à esfera doméstica, conforme se depreende da análise da historiadora Catherine Hall:

"Os evangélicos e utilitaristas empreenderam um enorme esforço de moralização dos pobres através da família. Em todo o país, instituições do ensino, escolas dominicais, sociedades filantrópicas difundiam as concepções burguesas da separação entre os sexos." (Sweet home. In: Phillippe Ariès, Georges Duby, dirs. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 71.)

Alguns setores sindicais, como o de mineração, também não viam com bons olhos o trabalho feminino, que eles consideravam depreciador do salário. Dessa maneira, operários e burgueses evangélicos, por motivos diferentes, concordavam em que era necessário manter as mulheres no universo doméstico.

Na década de 1840, ainda segundo Catherine Hall:

"[...] a comissão nomeada para investigar o trabalho infantil nas minas ficou assombrada e horrorizada ao ver as condições de trabalho das mulheres. Além do mais, elas trabalhavam ao lado de homens, sem estarem inteiramente vestidas como deveriam. Era uma afronta à moral pública, que ameaçava de ruína a família operária. Lançou-se uma campanha inspirada pelos evangélicos, para proibir que as mulheres trabalhassem nas minas." (Op. cit., p. 81.)

Segundo os preceitos dessa moral burguesa, as mulheres deveriam limitar-se a exercer as funções femininas "naturais": cozinhar, costurar, limpar e cuidar de crianças. Até mesmo alguns líderes operários, que supostamente deveriam defender melhores condições de trabalho para ambos os sexos, reivindicavam o chamado salário familiar, com o intuito de evitar que as mulheres trabalhassem.

A greve na região de Charleroi, Robert Koehler

A condição dos trabalhadores chegou a sensibilizar até mesmo aqueles que não compartilhavam a mesma situação econômica. Na Inglaterra, o evangelismo religioso difundiu-se e entrou em choque com o pensamento liberal, contribuindo para que parte das classes média e alta refletisse sobre as péssimas condições de vida da época industrial.

As informações e dados estatísticos publicados pelo governo britânico davam conta da gravidade da situação. Os debates que encaminhavam a abolição da escravidão nas colônias do Império, em 1830, possibilitaram comparações com as condições de trabalho na própria Grã-Bretanha. Assim, embora de maneira limitada, algumas reformas foram introduzidas nas áreas de saúde pública, higiene, moradia, educação, legislação criminal e fabril.

Alguns capitalistas, como Robert Owen, aceitavam e incentivavam as reformas parlamentares. Por iniciativa própria, tentaram formar dentro de suas fábricas uma organização com base na cooperação. Outros se opunham às reformas parlamentares, defendendo o liberalismo e afirmando que a interferência da legislação nos negócios particulares prejudicava o comércio e a indústria. Entretanto, os dados da produção industrial não confirmam tal argumentação: na segunda metade do século XIX, a Grã-Bretanha produziu oito vezes mais algodão do que nas duas primeiras décadas do século; no mesmo período, a produção de carvão mineral teve um aumento significativo, e a produção de ferro-gusa chegou a corresponder à metade da produção mundial.

Mas, se ao longo do século a situação dos trabalhadores melhorou sensivelmente, é certo que as contradições trazidas pelo sistema industrial jamais desapareceriam, O pensador inglês Thomas Carlyle afirmou:

"Temos mais riquezas do que qualquer nação teve antes e temos menos bem-estar do que qualquer nação teve antes [...] em meio à abundância pletórica, o povo perece." (Apud John Linch et alli. A força da iniciativa. Rio de Janeiro: Time-Life/Abril Livros, 1992. p. 72.)

A riqueza continuava concentrada, e a grande maioria da população permanecia excluída dos privilégios sociais e políticos.

REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005. p. 315-18.

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