"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O termo "Tempos Modernos": uma visão eurocêntrica da História?

Embora, na França, a expressão "Tempos Modernos" seja empregada para, geralmente, designar os séculos XVI, XVII e XVIII, uma explicação é necessária. A consciência de se haver entrado numa era nova foi percebida na Europa Ocidental no decorrer do século XVI.

Todavia, os historiadores estão longe de concordar sobre os limites cronológicos desta era nova. Na França [...] fazemo-la iniciar-se, em geral, em 1492, com a "descoberta" da América. Esta data apresenta o inconveniente de situar-se no meio do Renascimento, que abre os "Tempos Modernos". Certos historiadores, considerando que a Renascença, principia com o despertar das civilizações urbanas no Ocidente se inclinariam por um corte situado no começo do século XIII. Por causa disto, na Inglaterra, prefere-se fixar o início dos "Tempos Modernos" apenas quando a Renascença é dado como realizada, ou seja por volta do ano de 1600.


Carta náutica de Fernão Vaz Dourado, (c. 1520 - c. 1580), integrante de um atlas desenhado em 1571.

Voltados para o progresso, os "Tempos Modernos" não deveriam ter um fim. Entretanto, a historiografia francesa ficou impressionada com o desmoronamento da antiga monarquia, caracterizada por um regime, não somente político, mas ainda econômico e social, que se torna o "Antigo Regime" em relação ao mundo que se crê nascido com a declaração dos direitos do homem de 1789. Para designar este mundo considerado como novo, foi preciso encontrar um outro termo. Os historiadores franceses empregaram o de "contemporâneo", palavra que adquire aqui um sentido particular. Destarte, o ponto de partida da época contemporânea permaneceu curiosamente fixo, ao passo que os "Tempos Modernos", fixados em 1789, se afastam cada vez mais no passado.

Conquanto menos marcados que os franceses pela Revolução, os historiadores dos outros países da Europa distinguem também, em geral, um antigo regime e uma época mais recente, mas as denominações são diferentes. Como é lógico, o termo contemporâneo, para eles, é móvel, pois liga ao presente um passado todo próximo. O termo "moderno" designa, então, um período não acabado, mas incessantemente prolongado. Por causa disto, foram levados a introduzir divisões nesses "Tempos Modernos" destinados a se prolongarem. Os alemães distinguem Frühere Neuzeit e Spät Neuzeit, e os ingleses Early Modern Times e Later Modern Times... Estes termos, certamente menos rígidos que os nossos, se aplicam de maneira precisa ao antigo regime e ao regime novo? Neste caso, sua delimitação variaria segundo os países: 1848, para a maioria dos países da Europa Central; 1860 ou 1917 para a Rússia... De fato, os historiadores ocidentais reconhecem, geralmente, que o fim do século XVIII marca uma etapa importante na história de seus países em consequência do contragolpe das revoluções americana e francesa.

Trata-se, poder-se-á dizer, de modos de ver europeucentristas. Povos que hoje constituem mais da metade da humanidade não foram, em absoluto, subvertidos, no fim do século XVIII e no princípio do XIX, pelos grandes movimentos que afetaram a Europa e seus prolongamentos coloniais. Devemos negligenciar sua presença numa periodização do passado? Eu não penso que este argumento seja de natureza a fazer afastar o fim do século XVIII como termo do nosso período. O Extremo Oriente ou a Índia não têm neste momento, e não terão durante algum tempo ainda, um papel propulsor de primeiro plano na evolução da humanidade.

Outra objeção: o começo do século XVI e o fim do XVIII não representam uma mudança importante na história econômica ou na das condições materiais da vida. O descobrimento da América e o acesso direto dos europeus às Índias só farão sentir seus efeitos no decurso do século XVI, e a revolução da máquina, exceto para a Inglaterra, se situa no decurso do século XIX. Podemos desprezar tais fatos?

É verdade que toda periodização é artificial. [...]

Quando abordamos [a] Antiguidade ou a Idade Média [...] sabemos de antemão que, para compreendermos, nos deveremos desterrar completamente, pois que nos acharemos em presença de um mundo em que os homens viam de maneira diferente da nossa o tempo, o espaço, o domínio da natureza, as relações entre gerações, famílias e classes sociais. [...] Ora, "o homem de Versalhes" está muito longe de nós. Que dizer do homem dos campos ou das pequenas cidades contemporâneas de Lutero? Pois não existe um homem dos Tempos Modernos. Estes três séculos vêem realizar-se uma verdadeira mudança da espécie humana, menos visível e menos precipitada, sem dúvida, que a que assistimos atualmente, porém assaz profunda, uma vez que é ela que prepara esta última. É preciso que nos submetamos a uma série de desterramentos para podermos compreender os homens destes três séculos [...].

Com efeito, no fim do século XV, entram em contato mundos que até então se tinham ignorado inteiramente. Ora, pela primeira vez na história, o homem constatou qual era a forma da Terra. Ele ainda não sabia que não mais havia descobertas a fazer no globo da mesma importância que a da América. Mas nós, que o sabemos, avaliamos melhor que os contemporâneos de Américo Vespucci a importância de seu tempo na História: o planeta realizou sua unidade.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 5-7.

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