"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Os anglo-saxões e os "outros" povos no fim do século XIX

Por toda a parte, o preconceito racial impede a união dos anglo-saxões com os homens de cor; raramente notamos a superação do preconceito e o tratamento na base de igualdade.

Na América do Norte havia homens de alta estatura, nariz aquilino, cabelos negros e lisos, pele amarela, denominados impropriamente peles-vermelhas ou índios pelos imigrantes. Pescadores de salmão e caçadores de caribu no nordeste, caçadores de bisão e agricultores no centro (a civilização do milho surge entre os Grandes Lagos e as Rochosas centrais), sedentários no sudeste: uma grande variedade de organizações políticas, desde a tribo isolada até as grandes confederações guerreiras. Talvez um milhão de "selvagens" no início.

A velha trilha do búfalo, 1900. Henry F. Farny

A alternativa é o transplante ou o morticínio. O colono não terá descanso enquanto não for resolvida esta dificuldade da fronteira. Em seguida, intervém a lei de 1897, objetivando a participação mediante concessões definitivas de terras, pela melhoria das condições higiênicas e pela instrução: a última revolta é de 1890; o último "território índio" desaparece em 1905. Os sobreviventes - menos de meio milhão - curvam-se à lei comum ou confinam-se nas "reservas".

Os emigrantes, 1902-1906. Frederic Remington

Polinésio de origem, feroz e artista, o Maori também só se submeteu à autoridade neozelandesa após lutas encarniçadas. Cultiva o milho e a batata em terras indivisas, adota de bom grado os trajes europeus, converte-se ao cristianismo e aprende a falar o inglês.

Povos aborígenes pescando e acampando em Merri Creek, 1864. Charles Troedel

De natureza suave mas miserabilíssimos, os primitivos australianos viram-se repelidos para os desertos, longe das zonas abundantes em caça. Verdadeiras caçadas com matilhas foram contra eles organizadas pelos brancos, com o auxílio de uma polícia negra. Não constituem, atualmente, mais do que uma minoria, insignificante pelo número, mas digna de interesse para o cientista.

Família aborígene viajando, 1925. W.A. Cawthorne

Os europeus haviam chegado à África Austral, enquanto as migrações das tribos bantos continuavam, fora da zona intertropical, do lado das montanhas e dos altos planaltos, livres da mosca tsé-tsé, próprios à criação de gado e ricos em caça. As longas e mortíferas guerras cafres testemunham a resistência à ocupação branca. Mas, à medida que se enfraquece esta resistência armada, mais numerosos são os negros que se submetem às condições impostas pelos brancos; a exploração das minas aumenta ainda o contingente dos proletários de cor. Os mais penosos ofícios atraem, aliás, os hindus e os malaios, tratados da mesma maneira e considerados intrusos pelos outros elementos. O receio das raças, por eles exploradas e consideradas inferiores, não contribui pouco para, finalmente, aproximar bôeres e britânicos.

Uma inquietude da mesma natureza brota entre os australianos frente aos asiáticos, chineses na maioria, pouco numerosos, sem dúvida, mas hábeis no comércio, nos pequenos ofícios e mesmo na agricultura. Já em 1855, esta inquietude suscita as primeiras restrições à entrada de amarelos; um homem público neozelandês qualifica sua concorrência como "suja, contrária à natureza, injusta".

Encontra-se idêntica preocupação entre os americanos do oeste, relativamente ao afluxo dos chineses. Estes surgiram por ocasião do rush aurífero: agências recrutavam-nos em Macau e Hong-Kong, empregavam-se nas oficinas das estradas de ferro. Mas eram afamados cozinheiros e domésticos, procurados para limpeza da roupa branca, aptos para a criação do bicho-da-seda e perspicazes comerciantes. Violando um acordo com a China, a Califórnia não hesita, em 1882, em proibir sua imigração, medida que foi aprovada pela Corte Suprema. Mais tarde a legislação ocupar-se-á dos japoneses.

Livre desde a Guerra de Secessão, o negro americano tornou-se em princípio, um cidadão como os outros. Mas a escravatura e a sangrenta discórdia deixam traços e lembranças tenazes. Durante a era da "reconstrução" vingadora, os homens da Secessão reorganizam-se, respondem com a violência e a intimidação a algumas violências cometidas pelos antigos escravos (trata-se da época do Ku-Klux-Klan), reconquistam suas legislaturas e limitam o mais possível os direitos concedidos aos homens de cor pelas emendas à Constituição. Assim vivem as duas raças lado a lado, uma sempre imbuída de sua superioridade e hostil à qualquer mistura, submetendo a outra a humilhante segregação. Embora o número de negros diminua relativamente à população total (12% em 1890, contra 14% em 1860 e perto de 20% em 1790), seu total eleva-se ainda, trinta anos após a guerra civil, a 6 milhões e meio, aos quais devemos acrescentar cerca de um milhão de mulatos. E esta minoria tende, inicialmente, a agrupar-se na região do Golfo do México: segregação geográfica que agrava a outra.

Vida de negro no sul, ca. 1870. Eastman Johnson

Os negros, em sua maioria, voltaram a trabalhar nas explorações, como locatários ou como jornaleiros. [...]

Niggers plant de cotton
Niggers pick it out
White man pocket money
Niggers go without.

Missus in de big manse
Mammy in de yard
Missus holding her white hands
Mammy workin' hard.

White man in starched shin
Setten in de shade
Laziest man God ever made.

As catadoras de algodão, 1876. Winslow Homer 

Delineia-se um movimento, é verdade, tendo por fim permitir aos negros uma melhor defesa de suas possibilidades na batalha social. Uma elite pode, graças à instrução, dedicar-se a profissões liberais. Em 1882, o homem de cor é admitido no corpo médico, em 1889 na advocacia. Por vezes baja-se o êxito nos negócios, torna-se comprador de imóveis e de bens de raiz, que aluga, por sua vez. O apostolado de educadores, dos quais o mais célebre, Bugre Washington, funda a universidade negra de Tuskegee, principia a dar frutos por volta de 1900. Mais numerosos, porém, são os que deixam a terra para tentar fortuna entre os brancos de outras regiões; e o racismo, longe de perder sua virulência, expande-se com eles. Seja como for, o mundo americano está todo penetrado desta presença ao mesmo tempo indesejável e inevitável; não poderá evitar, no jazz, a dívida ao folclore africano e a exibição de boxadores da raça desprezada.

SCHNERB, Robert. O Século XIX: as civilizações não-eruopeias. o limiar do século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 30-32 e 35.

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