"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Família e vida cotidiana na África Ocidental

Costumes africanos

Texto 1. Em grande parte da África Ocidental, as famílias eram formadas pelo chefe - o Homem Grande - acompanhado pelos filhos, esposa, irmãos mais novos e outros parentes que necessitassem de apoio, contendo entre dez e quarenta pessoas, que compunham as aldeias. Aos ancestrais mortos e aos homens mais velhos da comunidade era atribuída grande importância, devendo-se respeito e obediência.

Uma das formas de casamento era por meio de rapto de mulheres nas suas aldeias. Em geral, a família do futuro marido pagava à família da noiva um dote. A maior parte dos casamentos era polígamo. As mulheres casavam-se muito jovens, ainda na adolescência, e os homens um pouco mais velhos, por volta dos 30 anos. As mulheres cuidavam dos trabalhos agrícolas e, em alguns lugares, como nas savanas e nas florestas meridionais da África Ocidental, também do comércio. O trabalho mais pesado, como a abertura de caminhos nas florestas, ficava reservado aos homens. As colheitas eram feitas pelos dois.

Os povos da África Ocidental davam grande importância à geração de filhos. Um provérbio iorubá dizia que "sem filhos estás nu". Os filhos eram a garantia de uma boa velhice dos pais e, depois, quando da sua morte, eles dariam continuidade à família. MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2008. p. 58.

Paisagem da cidade de Kano, Heinrich Barth


Texto 2.  Na maioria das culturas africanas, a fertilidade constituía atributo essencial para homens e mulheres. Quem não podia ter filhos era desprezado pelo grupo social. O número de filhos de uma família era proporcional ao seu prestígio na comunidade. As mulheres férteis eram disputadas e até raptadas pelos seus pretendentes. Homens ricos podiam casar com dezenas de mulheres e ter centenas de filhos. A maternidade inspirou artistas da época [...]. A disputa por esposas gerou muitos conflitos. A proteção das mães e das crianças era responsabilidade de todos.

As casas eram construídas de pedra ou de uma mistura de barro e óleo de dendê. Nos locais onde os construtores utilizaram materiais duráveis, como pedras, foi possível conhecer melhor o modo de vida dos indivíduos.

Pesquisas recentes revelam a importância política e comercial de algumas cidades como Mbansa Kongo, Benin, Grande Zimbábue, Kano e muitas outras. Nesses locais, a vida urbana foi dinâmica, lúdica (com danças, jogos e cantorias) e comercialmente ativa. Há indícios de que a vida média dos indivíduos tenha sido aproximadamente 40 anos. BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myrian Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Da conquista da América ao século XIX. São Paulo: Moderna, 2010. p. 32.

Texto 3. A mulher negra, porém, apesar das mutilações corporais que por vezes lhe eram infligidas, gozava também de prerrogativas que são precisamente o contrário da opressão e que lhes davam um estatuto invejável em relação às mulheres de certos países da mesma época: liberdade sexual [...]; liberdade de deslocação por ocasião da maternidade ou das visitas à família; [...] regime matrilinear, que dá ao irmão a autoridade sobre os filhos; libertação econômica pela apropriação dos ganhos das suas múltiplas atividades rurais ou comerciais; [...] direitos políticos ou espirituais que lhe abrem por vezes o caminho do trono e da regência ou fazem dela sacerdotisa respeitada, em particular nos ritos de fertilidade. KI-ZERBO, Joseph. História da África negra 1. Lisboa: Europa-América, s/d. p. 225.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O Novo Mundo, o Paraíso Terrestre

Mapa da América, 1561, do cartógrafo Sebastian Munster

O Novo Mundo. Lugar onde se encontraria o Paraíso Terrestre. Terra de riquezas incalculáveis e cidades com telhados de ouro. Lugar de liberdade habitado pelo "bom selvagem". Campo virgem para serem lançadas as verdades evangélicas e para ampliar o mundo cristão. Lugar onde os projetos de enriquecimento e de enobrecimento podiam ser realizados. Esses eram os sonhos que povoaram o pensamento de descobridores, conquistadores e colonos que vieram para a América.

E os indígenas americanos? Qual o sentido que deram para a chegada de seres tão estranhos? Poderiam ser aliados importantes contra os inimigos tradicionais? Eram os inimigos que deviam ser combatidos, expulsos, devorados? Seriam os deuses há muito anunciados pelas profecias e presságios? Cada povo indígena entendeu essa chegada inusitada de acordo com a sua cultura.

Para os historiadores, que olham esse evento já de certa distância, a chegada dos europeus ao continente americano marcou o início de uma nova era. Milhões de seres foram exterminados e escravizados. Povos inteiros deixaram de existir. Onde só havia a floresta, surgiram imensas plantações. O solo foi rasgado e perfurado para arrancar ouro, prata e diamantes. A Europa acumulou riquezas como nunca havia ocorrido antes.

PEDRO, Antonio. LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 62.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Renascimento

Mona Lisa, Leonardo da Vinci

Texto 1. Designamos pelo nome de Renascimento a retomada de uma vida econômica, social e cultural de larga intensidade, que se verificou, de início na Itália e depois em toda a Europa, de meados do século XV ao fim do século XVI.

O grande florescimento econômico de várias cidades italianas, tais como Florença, Ferrara, Veneza, Milão, Urbino, prósperos centros de comércio agrícola e manufatureiro permitiu-lhes dar notável impulso a interesses culturais, proteger artistas, organizar ricas bibliotecas, fundar Academias, onde se reuniam estudiosos e pesquisadores.

Desempenharam papel significativo nesta época os estudos aprofundados das literaturas clássica, que desde o século XIV vinham sendo feitos pelos humanistas (de humanae litterae, como eram chamados os estudos de textos latinos e gregos). Consideravam-se esses estudos de grande importância para a formação do homem e para o bom desempenho de suas funções na sociedade. Por meio desses estudos, os quais revalorizavam, além de obras latinas, as obras gregas introduzidas na Europa por estudiosos bizantinos, após a tomada de Constantinopla pelos turcos, constatou-se que os antigos já haviam explorado os mais variados campos das realizações humanas, técnicas, científicas, artísticas e literárias. Passou-se a admirar e a querer imitar o tipo ideal do homem clássico, centro do universo, integrado na natureza, protagonista da história, o homem independente e altivo.


Madona com o diadema azul, Rafael Sânzio

O homem do Renascimento deveria ser não mais submisso à vontade exclusiva de Deus, porém um homem completo sob o ponto de vista físico e espiritual, deveria interessar-se por todos os ramos do conhecimento, desde as artes até as ciências; deveria saber guerrear com bravura, ser um político astuto, um hábil diplomata, um governante de pulso e ser, antes de mais nada, responsável por si mesmo, por seus triunfos e seus malogros.

O Renascimento englobou todos os aspectos da vida, da política às artes, da literatura às técnicas, buscando em todos equilíbrio, perfeição, beleza e harmonia. A arte, sob todas as suas formas, passou a significar a mais alta expressão da personalidade humana. Os artistas desfrutavam de prestígio imenso, tanto assim que as famílias aristocráticas disputavam entre si o privilégio de protegê-los. Considerando os modelos artísticos da Antiguidade como os mais perfeitos, os artistas do Renascimento neles se inspiraram; em toda a Europa começaram a formar-se museus onde eram colecionados bustos, estátuas, mosaicos, objetos de adorno de origem clássica.

"O Renascimento Artístico teve seus expoentes em Leonardo da Vinci (pintor de A Última ceia, A Gioconda ou Mona Lisa, além de esculturas, músicas, trabalhos filosóficos e matemáticos etc.), Miguel Ângelo, que decorou a Capela Sistina, destacando-se o conjunto do Juízo Final, e esculpiu as estátuas de Moisés, Davi e Pietá, Rafael Sânzio (famoso pelas pinturas de Madonas) e Correggio (Cúpula da Igreja de ão João), na Itália. Acrescentam-se Hans Holbein (conhecido pelos retratos de Henrique VIII e de Erasmo) e Albrecht Dürer (Cristo Crucificado), pintores alemães; Rubens, pintor flamengo, e Murilo e El Greco (de origem grega), mestres da pintura espanhola." (AQUINO, Rubim Santos Leão de. [et alli]. Fazendo a História: As sociedades Americanas e a Europa na Época Moderna. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 29-30.)


Um dos nus do teto da Capela Sistina (detalhe), Michelangelo

Mas o homem do Renascimento não se limitou apenas a revalorizar a Antiguidade, a imitar os modelos das civilizações grega e romana. Tendo adquirido confiança nas suas possibilidades, passou a explorar a natureza ao seu redor, a fim de melhor conhecê-la, de dominá-la e de ampliar assim a visão do mundo.

Retomando teorias astronômicas da Antiguidade (em particular a de Aristarco de Samos), o polonês Nicolau Copérnico refutou a teoria do sistema geocêntrico, que dominara por toda a Idade Média, e elaborou a teoria heliocêntrica, tendo o sol como centro do universo.

A visão científica do mundo alargou-se consideravelmente, permitindo grandes progressos nos conhecimentos humanos. A mais notável invenção técnica da época foi a imprensa. Em meados do século XV o alemão Gutenberg descobriu como reproduzir em madeira cada letra do alfabeto (caracteres móveis); ordenados em palavras, as letras eram cobertas de tinta e prensadas sobre folhas de papel, permitindo a impressão de várias cópias de um mesmo livro. O livro impresso tornou-se o fator principal para a difusão do saber, ao qual os humanistas haviam dado poderoso impulso.


Oficina de imprensa em fins do século XV

Ressalta ainda o aperfeiçoamento no emprego de explosivos (pólvora), de há muito conhecidos e utilizados pelos chineses e pelos árabes. Permitindo a fabricação de armas de fogo mais eficientes, revolucionou as técnicas militares, os sistemas defensivos e, dando destaque à participação da infantaria nos combates, fez com que a cavalaria, tão significativa na Idade Média, perdesse sua projeção.

Ocorreram também, nesse período, grandes expedições marítimas, graças ao progresso da astronomia náutica e da cartografia, a instrumentos de navegação aperfeiçoados (bússola, astrolábio), ao aparecimento da caravela. Os descobrimentos geográficos que se seguiram possibilitaram à Europa entrar em contato com terras longínquas e trouxeram importantes consequências históricas. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 172-3.

Texto 2. Orgulhoso de seu momento histórico - a superação das crises do final da Idade Média -, o homem do século XVI denominou sua época de Renascimento. Pretendia assim dar ideia de que o período imediatamente anterior teria sido pouco importante - uma idade "média" colocada entre duas fases áureas da humanidade. Para os renascentistas, os séculos XV e XVI assistiam ao ressurgimento da brilhante cultura greco-romana. Tal pretensão é considerada hoje exagerada, pois a Idade Média não desconhecera a cultura antiga, aliás preservada em parte graças aos medievais. Assim, não houve uma quebra de continuidade entre um período e outro. Por isso, atualmente se prefere datar o Renascimento entre 1300 e 1600.

Porém, se o homem renascentista não tinha características absolutamente novas, sem dúvida havia nele alguns elementos que o distinguiam de seus antecessores medievais: era profundamente individualista, racionalista, eclético, hedonista, enfim, humanista. O homem se autovalorizava, vendo sua existência como uma forma não apenas de louvar o Criador, mas também de louvar a si mesmo como criador.

Esse perfil, contudo, não se aplicava a toda a população europeia da época. A cultura renascentista, na verdade, foi um fenômeno de elite, um movimento urbano, tendo se manifestado desigualmente entre as várias regiões. O centro-norte italiano, a parte mais urbanizada e rica da Europa de então, foi o pólo dinâmico desse movimento cultural. Nas zonas rurais que cobriam a maior parte da Europa, predominava uma cultura tradicional popular e oral.

Nesse momento de intensificação das trocas comerciais e dos contatos possibilitados pelas peregrinações, pela diplomacia e pelas guerras, cultura erudita e cultura popular naturalmente se interpenetravam. É o que se percebe, claramente, por exemplo, nas obras do italiano Boccaccio, do francês Rabelais, do alemão Dürer e do espanhol Cervantes. FRANCO JR., Hilário; FILHO, Ruy de Oliveira Andrade. Atlas História Geral. São Paulo: Scipione, 1994. p. 30.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

A viagem do Sol


Jesus não podia festejar seu aniversário, porque não tinha dia de nascimento.

No ano de 354, os cristãos de Roma decidiram que ele havia nascido no dia 25 de dezembro.

Nesse dia, os pagãos do norte do mundo celebravam o fim da noite mais longa do ano e a chegada do deus Sol, que vinha para romper as sombras.

O deus Sol tinha chegado a Roma vindo da Pérsia.

Era chamado de Mitra.

Passou a se chamar Jesus.

GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 403.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Homens de mármore

O Erecteion, Atenas, com figuras em primeiro plano, Charles Lock Eastlake

"Sonho com claustros de mármore
onde em silêncio divino
repousam heróis, de pé.
De noite, aos fulgores da alma,
falo com eles [...].
Estão em fila; choroso
me abraço a um mármore. - 'Ó mármore,
dizem que bebem teus filhos
o próprio sangue nas taças
envenenadas dos déspotas!
Que falam a língua torpe
dos libertinos! Que comem
reunidos o pão do opróbrio
na mesa tinta de sangue!
Que gastam em parolagem
as últimas fibras! Dizem,
ó mármore adormecido,
que tua raça está morta!'"


MARTÍ, José. Homens de mármore. In: LISBOA, Henriqueta (org.). Antologia de poemas para a juventude. São Paulo: Ediouro, 2005. p. 96.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Paris, primavera de 1832

Barricadas na rua Soufflot em 24 de junho de 1848, Horace Vernet

"[...] O que vamos contar, podemos dizer: vimo-lo. Mudaremos alguns nomes porque a História conta e não denuncia; mas pintaremos coisas verdadeiras.

[...] Paris, na primavera de 1832 [...] estava havia muito preparada para uma comoção. Como já temos dito, a grande cidade assemelha-se a uma peça de artilharia; quando está carregada, basta que de qualquer parte caia uma faísca para que ela dispare. Em julho de 1832, a faísca foi a morte do general Lamarque.

A sua morte, já esperada, era temida pelo povo como uma perda e pelo governo como uma ocasião propícia. Aquela morte foi um luto. O luto, como tudo o que é amargo, pode tornar-se revolta. Foi o que sucedeu.

[...] A 5 de junho, pois, dia entremeado de chuva e de sol, atravessou Paris o cortejo fúnebre do general Lamarque, com a pompa militar oficial, um tanto aumentada por precaução. Dois batalhões [...], dez mil homens da guarda nacional e as suas baterias de artilharia escoltavam o funeral. O coche ia puxado por moços. Logo atrás, iam os oficiais [...]. Depois ia a multidão inumerável, agitada, desconhecida [...], as escolas de direito e de medicina, os refugiados de todas as nações [...], rapazes agitando ramos verdes, canteiros e carpinteiros que não tinham trabalho, impressores [...] soltando gritos, quase todos agitando paus e alguns brandindo espadas. [...] Nas janelas, em cima dos telhados, era prodigiosa a quantidade de cabeças de homens, de mulheres e de crianças, com a aflição nos olhos. Era uma multidão assustada, vendo passar uma multidão armada.

O governo pela sua parte observava tudo. [...] O poder, inquieto, tinha suspensos sobre a multidão ameaçadora vinte e quatro mil soldados na cidade e trinta mil nos arredores.

[...] Os dragões avançavam passo a passo, silenciosos com as pistolas nos coldres, as espadas nas bainhas, as carabinas nos arções e com ar de sombria expectativa. A duzentos passos da ponte pequena fizeram alto. [...] Neste momento tocavam-se os dragões e a multidão. As mulheres fugiam cheias de terror.

O que ocorreria naquele minuto fatal? Ninguém poderia dizê-lo. Era o momento tenebroso do encontro de duas nuvens. [...] Foram inesperadamente disparados três tiros. [...] E de repente viu-se um esquadrão de dragões desembocar, a galope e de espadas em punho, varrendo o que achava no caminho.

Então acabaram-se as hesitações, a tempestade desencadeia-se, chovem as pedras, sucedem-se as descargas de fuzilaria, muita gente precipita-se para a base da encosta [...]. Os carabineiros avançam, os dragões acutilam, a multidão dispersa-se em todas as direções, o rumor de guerra repercute nos quatro ângulos de Paris. Todos gritam: Às armas! Correm, caem, fogem, resistem. [...]

Não há coisa alguma mais extraordinária do que o primeiro movimento de uma revolta. Tudo explode ao mesmo tempo e em toda a parte. Era coisa prevista? Era. Estava preparada? Não. De onde saiu aquilo? Das ruas. [...]

Não tinha ainda passado um quarto de hora e repetia-se ao mesmo tempo, em vinte pontos de Paris. [...] Nas margens direita e esquerda, nos cais, nas ruas e avenidas viam-se homens, afogueados, operários, estudantes, lendo proclamações e gritando às armas, quebrando lampiões, desaparelhando os veículos, descalçando as ruas, arrombando as portas das casas, arrancando as árvores, entrando nas adegas e rolando para fora as pipas, amontoando as pedras da calçada, lajes, tábuas e fazendo barricadas."

HUGO, Victor (1802-1885). Os miseráveis. 1862. São Paulo: Edigraf, 1957. 4ª parte, livro 10º , cap. II-IV. p. 673-8.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Descobrimentos e Renascimento

Francisco Pizarro na ilha de Gallo, convidando seus soldados para cruzar a linha traçada no chão, se eles desejassem continuar sua expedição para o Peru, Juan B. Lepiani


A suposição de que a Terra era redonda e a necessidade de comprovação dessa hipótese através de uma viagem são um projeto tipicamente renascentista. [...]

Ao descobrir outras culturas, o homem do Renascimento hierarquizou-as: da civilização à barbárie. Nesse sentido, o humanista constitui-se a partir de uma vontade de domínio e poder sobre todos os povos do mundo.

Desenhar um mapa, construir o império, destruir outras culturas, impor a fé cristã, assinar obras de arte eram atitudes renascentistas.

A América - destruída e construída a partir do padrão europeu - transformava-se em lugar de comprovação da superioridade da cultura europeia. Era necessário construir uma igreja em cima de uma pirâmide indígena. Não podia ser ao lado.

A invenção da perspectiva na pintura é contemporânea às Grandes Navegações. Ao mesmo tempo em que o pintor estudava as possibilidades de criar a perfeição (reprodução) em seus desenhos, os cartógrafos procuravam mapear, com observância rigorosa, todo o globo terrestre. [...]

Os descobridores, ao realizarem sua obra de colonização construindo igrejas e outras edificações necessárias à conquista, e os artistas, pintando ou esculpindo na Europa, consideravam a existência de um único padrão de beleza, uma única religião verdadeira, uma cultura superior a todas as outras. Descobridores e artistas olhavam o mundo de um único ponto e a partir dele destruíam e construíam. [...]

O resultado desse grande esforço renascentista, dessa "plenitude", foi suporem possuir domínio sobre a vida e a morte das populações que consideravam bárbaras. A América conheceu a expressão mais violenta desse sonho de dominação.

Aqui, nesse Novo Mundo, grande parte da população foi morta por aqueles que necessitavam esculpir a sua cultura sobre as populações pré-colombianas. Não foram anos fáceis para a América. [...]

O colonizador, como se fosse um escultor, talhou a América na forma em que havia imaginado. Destruía pirâmides para construir igrejas, derrubava habitações para obter o desenho da praça ou o traçado desejado para as ruas, jogava pedras nos canais para que os cavalos pudessem circular melhor na cidade. Reconstruía-se tudo o que era possível para que o núcleo urbano lembrasse a Europa. [...]

Os indígenas aprendiam a pintar e a construir para que a América, cada dia mais, se apresentasse com as formas, as cores e a vida europeia. Uma multidão de artífices indígenas se esforçavam para imitar o desenho que viam em precárias reproduções trazidas pelos europeus.

Por todos esses motivos analisados, a harmonia presente nos quadros renascentistas transformava-se em desarmonia no Novo Mundo.

SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Renascimento. São Paulo: Contexto, 1991. p. 56-58, 63-64.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Lançamento do livro "Ecos do tempo: uma viagem pela história"



O historiador Orides Maurer Junior é licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências, Letras e Artes de Joinville, pós-graduado em Práticas pedagógicas inovadoras na Educação Básica com ênfase em História pela AUPEX, autor do blog História e Sociedade e do livro Ecos do tempo: uma viagem pela história (Letradágua, 2015).

O livro será lançado na Feira do Poeta, ao lado da Casa Romário Martins, no Centro Histórico de Curitiba, em 20 de dezembro/2015, a partir das 10 horas da manhã.




"Há diversas formas de se fazer e contar a História. Ecos do tempo: uma viagem pela história apresenta aos leitores textos, crônicas, dossiês e poesias através de “recortes históricos” de tempos e culturas diversos, escritos de forma a quebrar tabus, preconceitos e estigmas, expondo os dilemas, as lutas, as conquistas, as utopias, os amores e o legado dos povos, sem perder de vista suas conexões com o tempo presente, a razão da própria História". (Prefácio do livro)

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A cidade do Novo Mundo no século XIX

5ª Avenida no Madison Square, Nova Iorque, 1894-1895. 
Theodore Robinson 

Apenas na segunda metade do século XIX assume o fenômeno urbano proporções dignas de nota. Nos Estados Unidos em 1850, mais de 19 milhões de habitantes, num total de 23 milhões, vivem ainda nos campos. Todas as cidades das regiões austrais são modestíssimas. Mas em 1900, de 75 milhões, 30 milhões de americanos são citadinos, 12 milhões aglomeram-se em cidades de mais de 100.000 habitantes - em número de 30. A partir de 1870, Chicago saltou, de 300.000 para 1.700.000; Nova Iorque ultrapassou os 3 milhões e Filadélfia, 1 milhão. O avanço, bem modesto na África do Sul, vigoroso no Canadá, afirma-se excepcionalmente rápido na Austrália, onde, em 1890, Sydney, Melbourne e Adelaide reúnem um quarto da população total, cabendo a Melbourne quase a metade dos habitantes de Victoria.

Rua George, Sydney, 1883. Alfred Tischbauer 

Nestas condições, surgem por toda a parte cidades novas e cidades-cogumelos. Na frente pioneira a cidade é uma formação primária - a rural non farm - que agrupa os albergues, as igrejas, as escolas, os postos de mudas de cada township. Corresponde, com efeito, à função de intercâmbio que se impôs imediatamente com homens do campo. Mas frequentemente a mina ou fábrica cria a cidade. Em tal caso, a toponímia evoca com intensidade o pensamento criador: assim, ao redor de Pittsburgh, os Bessemer, Etna, Carnegie, Monessen (Essen e Monongahela), alhures os Ironton, Ironmoutain e Ironwood. Há também capitais fundadas para abrigar os serviços governamentais e administrativos, a exemplo de Washington.
Passou o tempo em que era possível a compra de "todo o maldito pântano" de Chicago por um par de velhos sapatos, como se pretendeu mais tarde. John Astor, o comerciante de peles, deu o exemplo com a aquisição de terrenos em Nova Iorque; um de seus filhos, falecido em 1875, deixa uma fortuna de 100 milhões de dólares, dos quais 700 imóveis às margens do Hudson; em 1912, graças a novas compras e à alta da renda territorial, os Astor possuem um capital de 450 milhões. Em Chicago, o preço de 1.000 metros quadrados passa, de 20 dólares em 1830, a 1 milhão em 1892.

O loteamento regular de amplas superfícies, geograficamente cadastradas, explica o plano em tabuleiro. A este do Atlântico, a rua é alinhada segundo as casas, pois acompanha o desenho irregular das propriedades; aqui, a casa é que vem se colocar ao longo da rua. Resulta daí uma extrema monotonia, sublinhada pela numeração das ruas. Chicago, com 44.000 hectares, tem uma densidade quatro vezes menor que Londres (30.000) e Filadélfia (33.500), cinco vezes.

Este gigantismo dispersa as habitações, em geral pouco elevadas, frequentemente construídas de tijolos. O hábito de construir em altura apenas se manifestou após 1890, nos bairros de negócios, onde o terreno atingiu enormes valores: assim, por volta de 1890, na ponta de Manhattan, na cidade baixa, próxima do porto, levantam-se cerca de trinta imóveis de 10 a 30 andares, construídos por ricos particulares, companhias de seguros ou bancos. Não longe destes gigantes, que abrigam lojas e escritórios, estende-se uma zona de habitações, já escurecidas e maltratadas, progressivamente abandonadas à gente pobre; assim, por vezes, o slum é vizinho do arranha-céu; depois, estende-se para além uma nova cidade industrial, cercada por um subúrbio residencial. Em Nova Iorque, a parte oriental da cidade baixa é o bairro do sweating system; um segundo centro de negócios e de residências constitui-se no centro. Verifica-se a justaposição de conjuntos disparatados, sendo as perspectivas cortadas pelas vias férreas e pelas instalações industriais. Em Adelaide, ao contrário, a cidade do trabalho e a das residências são distintas, cada uma cercada de parques. As cidades australianas, de resto, parecem ser as mais cuidadas; as ruas são calçadas de madeira e as casas, pouco originais, não salientam demasiado as diferenças sociais. Nos Estados Unidos, bairros ricos e bairros pobres contrastam rudemente. Os viajantes descrevem complacentemente as belas vivendas dos círculos opulentos de Boston, de Filadélfia e de Nova Iorque; assim, o Barão de Hübner, por volta de 1875, admira, em Chicago, "a célebre Michigan Avenue... bairro da plutocracia, (suas) casas luxuosas, todas de madeira, mas estucadas e construídas nos mais diversos estilos, italiano clássico barroco, gótico, românico, quase todas cercadas ou precedidas de belos jardinzinhos..." Mas a poeira, no verão, a lama, no inverno, são verdadeiros flagelos. O fato de a 5ª Avenida em Nova Iorque ser um pouco tratada é uma exceção, nota um observador. Há imundícies por toda parte; em qualquer estação, é preciso usar botas de borracha. No Canadá, relata um outro, apenas são pavimentadas as ruas de Toronto e Winnipeg. A iluminação é superior à das cidades europeias, mas o sistema de esgotos deixa a desejar e, por vezes, há falta de água. Já em 1878 Búfalo inaugura um aquecimento central a vapor, adotado em seguida por Detroit e Nova Iorque. Multiplicam-se os meios de locomoções e, ao contrário das cidades australianas, que dão uma impressão de tranquilidade, com seus ônibus puxados por cavalos, as aglomerações americanas espantam o visitante com o estrépido de seus veículos.

Tempestade de neve, Madison Square, Nova Iorque, ca. 1890. Childe Hassam

O colorido étnico caracteriza também as cidades dos Estados Unidos. Em Nova Iorque, italianos, irlandeses, judeus, negros têm seus bairros próprios. O melting-pot não faz, de maneira alguma, desaparecerem estes particularismos; cria e acrescenta a cada tipo especial um tipo suplementar, americano, que é o tipo comum.

SCHNERB, Robert. O Século XIX: as civilizações não-eruopeias; o limiar do século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 39-41, (História geral das civilizações, v. 14)

sábado, 12 de dezembro de 2015

Lamarca e a guerrilha rural

"Três anos de revolta
no Araguaia
A luta na selva,
lavouras abandonadas,
homens, mulheres e crianças
trucidados nos castanhais.
Vilas bombardeadas
e rios envenenados
- o napalm na floresta.
Foi preciso perseguir cada posseiro,
cada castanheiro e cada agricultor
para conter a guerrilha."
(Os rios envenenados, poema de Carlos Amorim)


Capitão Carlos Lamarca dando instruções ao VPR

Entre as inúmeras teses que faziam os "revolucionários" se consumir em debates intermináveis estava aquela que dividia as ações armadas em guerrilha urbana e guerrilha rural. Uma das teorias mais aceitas entre os que partiram para a luta contra o regime militar era a de que a guerrilha urbana serviria para "arrecadar fundos" (por meio de assaltos a bancos, na época chamados pelos guerrilheiros de "expropriações"), que financiariam a guerrilha rural.

O primeiro foco de guerrilha no campo surgiu em fins de 1966, na serra do Caparaó, fronteira entre Minas Gerais e Espírito Santo. Foi estabelecido por integrantes do Movimento Nacional Revolucionário. Com apenas quatorze guerrilheiros, esse "núcleo" revolucionário foi logo desbaratado pelo Exército, em janeiro de 1967. Mas o MNR deu origem à Vanguarda Popular Revolucionária e, sob a liderança do capitão Carlos Lamarca - desertor do Exército -, a VPR criou um novo foco de guerrilha rural, no vale do Ribeira, região sul do estado de São Paulo. Com apenas nove homens, a guerrilha do vale do Ribeira também foi vencida com facilidade em maio de 1970. Mas Lamarca já se tornara um herói revolucionário.

Em janeiro de 1969, o capitão Carlos Lamarca fugira do quartel de Quitaúna, Osasco (SP), com 63 fuzis FAL, dez metralhadoras INA e três bazucas. Nacionalista de esquerda, Lamarca, nascido em 1937, escapara do expurgo do exército em 1964 e se tornara instrutor de tiro dos funcionários do banco Bradesco - para "protegê-los" dos "terroristas". Mas Lamarca tinha-se tornado marxista em 1957 e, desde 1967, fazia parte da VPR. Escapando do vale do Ribeira, Lamarca e sua companheira Iara Iavelberg, então filiados ao MR-8, foram para a Bahia. Iara ficou em Salvador. Foi presa e morta - embora a versão oficial falasse em "suicídio" - em agosto de 1971. Poucos dias depois, em 17 de setembro, esgotado depois de percorrer o sertão baiano, Lamarca foi surpreendido, junto com o metalúrgico José Barreto, dormindo sob arbustos. Foram ambos fuzilados. Em 1972, o PC do B criou um novo foco guerrilheiro no Araguaia. Cerca de setenta homens resistiram por três anos ao cerco de 10 mil soldados. Em 1973, sem o apoio dos "camponeses", a guerrilha rural foi sufocada no país.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 377-8.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Marighella e a guerrilha urbana

"Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar."
(Trem azul, música de Lô Borges e Ronaldo Bastos)


Carteira de filiação de Carlos Marighella ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), 1945

Apesar de o Partido Comunista Brasileiro ter sido contrário à luta armada como forma de combater a ditadura, o endurecimento do regime militar levou vários militantes a contrariar a posição do principal partido de esquerda brasileira e a pegar em armas para enfrentar o avanço da linha dura. Um dos primeiros a romper com a determinação do PCB foi Carlos Marighella, velho militante de esquerda que participara da Intentona Comunista de 1935. Em 1967, aos 56 anos, ele fundou a ALN (Ação Libertadora Nacional) e partiu para a luta armada. "Expropriou" vários bancos e, na ação mais espetacular, tomou uma estação da rádio Nacional, em agosto de 1968, lendo um "manifesto revolucionário".

Inspirados pelo exemplo de Carlos Marighella, pela Revolução Cubana e pelo slogan dos revolucionários de todo o mundo - "criar um, dois, três, mil Vietnãs" -, centenas de jovens militantes (muitos deles estudantes de classe média) aderiram à guerrilha urbana nos dois últimos anos da década de 1960. Houve inúmeras dissidências internas, divergências táticas e ideológicas e posições ensandecidas.

Em fins de 1969, a morte de Marighella se tornara questão de honra para os grupos encarregados da repressão. Após a tortura de dois frades dominicanos que mantinham ligação com o "terrorista", os homens do delegado Sérgio Paranhos Fleury, liderados por ele mesmo, surpreenderam Marighella numa rua de um bairro chique de São Paulo, na noite de 4 de novembro de 1969. Antes que pudesse reagir, Marighella - autor de vários livros sobre guerrilha publicados em todo o mundo - foi crivado de balas. Segundo a versão oficial, ele morreu ao tentar "resistir à prisão".

A morte de Marighella não foi suficiente para sufocar a guerrilha, que, com o sequestro de vários diplomatas, adquiriria repercussão nacional e internacional. É uma lei da física que se aplica à história: toda ação gera reação igual e em sentido contrário. Se o endurecimento do regime resultou na eclosão da guerrilha - com o surgimento de várias organizações, como ANL, VPR, MR-8, VAR-Palmares -, o início da "guerra suja" levaria o governo, especialmente depois da posse de Médici, a radicalizar ainda mais a repressão.

Nesse contexto, surgiram primeiro a Operação Bandeirantes (OBAN) e depois os DOI-CODIs. Criada em julho de 1969, a OBAN reuniu todos os órgãos que combatiam a luta armada e foi financiada por empresários [...]. Mais tarde, o Exército passou a agir por meio dos Destacamentos de Operações e Informações (DOIs) e Centro de Operações de Defesa Interna (CODIs), órgãos coordenados pelo Centro de Informações do Exército (CIE). Na prática, essas casas de tortura acabariam se tornando um poder paralelo que mais tarde desafiaria o próprio governo.

Embora não fosse militar, ninguém simbolizou melhor esse período negro da história do Brasil do que o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Fleury entrou para o DOPS, com 17 anos e logo ingressou na Ronda Noturna Especial (Ronde), notabilizando-se como um ferrenho caçador de bandidos que andava acompanhado por um cão policial.

São dessa época as acusações de que Fleury fazia parte do Esquadrão da Morte, grupo de extermínio montado dentro da polícia. A partir de 1968, convocado para a luta contra a "subversão", ele prendeu, torturou e, em alguns casos, matou muitos "terroristas". Foi condecorado várias vezes. Levado a julgamento, nunca foi punido, embora houvesse provas de seus crimes. Contrário à anistia, que o beneficiou, Fleury morreu em circunstâncias bastante misteriosas em 1979.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 376-7.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O declínio do Império Romano e os povos bárbaros

Reunião do Conselho do Povo Germânico, S. Lankhout & Co.

Agricultores e pastores por necessidade, os bárbaros eram guerreiros por instinto e inclinação. O historiador romano Tácito descreveu-os como uma raça robusta de "olhos azuis e cabelo avermelhado; corpos grandes, especialmente fortes para o ataque", que considerava "fraqueza e indolência conseguir com o suor do rosto o que se pode ganhar derramando sangue".

A organização social deles estava voltada para a luta. O clã, a unidade básica, consistia num grupo de famílias cujos guerreiros reuniam-se periodicamente para aprovar as decisões de um líder eleito, o que faziam batendo as lanças nos escudos. Pouco a pouco, formaram-se bandos maiores por meio de alianças cimentadas por casamentos, trocas de presentes, ou conveniência. Surgiram chefes e até mesmo reis com séquitos de guerreiros que haviam prestado juramento de lealdade em troca da participação no produto das pilhagens.

Contudo, apesar de todo o entusiasmo, as tribos germânicas não passavam de um bando. Sem armamentos, lançavam-se às batalhas aos gritos e seminus, protegidos apenas por escudos de madeira ou vime. Poucos possuíam espadas, ao menos nos primeiros anos; os outros valiam-se de porretes ou lanças de madeira, com pontas afiadas no fogo.

Quando essas turbas bárbaras se defrontavam com as legiões romanas, altamente disciplinadas e armadas, o resultado era quase sempre uma debandada geral. [...]

E assim, durante a primeira metade do século III, os bárbaros foram mantidos a distância, palmilhando sem cessar as terras do outro lado do Reno e do Danúbio, aumentando em número e disposição hostil e tornando-se um grave problema para o império já à beira do colapso devido às desordens internas.

As desordens não eram poucas. O governo de Roma chegara ao fundo do poço da corrupção. Em 211, no seu leito de morte, o imperador Sétimo Severo deu um conselho sucinto a seus filhos: "Enriqueçam os soldados, desprezem todos os outros!" Severo sabia muito bem do que estava falando: ele próprio conquistara o trono do Império Romano pela força de seus leais soldados, após décadas de caos e sangue que se seguiram ao reinado de Marco Aurélio.

História em Revista 200-600. Impérios sitiados. Abril Livros: São Paulo, 1991. p. 16.

domingo, 6 de dezembro de 2015

A arte simbolista do artista finlandês Hugo Simberg

O jardim da morte, Hugo Simberg

Rei duende dormindo, Hugo Simberg

Devoção, Hugo Simberg

Frost, Hugo Simberg

Adão e Eva, Hugo Simberg

O pobre diabo pelo fogo; o diabo por pote, Hugo Simberg

Sonho, Hugo Simberg

Väinämöinen e Ikiturso, Hugo Simberg

Visão; Fantasia, Hugo Simberg


Dança no cais, Hugo Simberg

Dança em volta, Hugo Simberg

Outono II, Hugo Simberg

A flor maravilhosa, Hugo Simberg

Um demônio morto, Hugo Simberg

Dança na ponte, Hugo Simberg

O anjo ferido, Hugo Simberg

Na encruzilhada, Hugo Simberg

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Religião na Grécia Antiga

A carruagem de Zeus. Projeto Gutenberg

A religião grega foi politeísta. Através dos tempos, o povo grego criou estórias e lendas a respeito de vários deuses e de sua origem. A essas estórias e lendas, cheias de imaginação e de fantasia, chamamos mitos, e ao conjunto de mitos, mitologia.

Interpretando os mitos, poetas e artistas foram sucessivamente esboçando características peculiares a cada um dos deuses, fixando sua imagem em pinturas e esculturas.

Os deuses gregos, comparados aos deuses de outros povos da Antiguidade que os precederam, não eram distantes, misteriosos; assemelhavam-se aos homens e viviam entre eles. Como os homens, tinham virtudes e defeitos, franquezas e paixões; eram, porém, mais fortes, e imortais; embora invisíveis, podiam aparecer aos mortais sob forma humana. Por isso a mitologia grega não pode ser considerada religião no sentido que nós lhe emprestamos.

Os deuses estavam por toda parte: no céu, no mar, sobre a terra e nas profundezas do solo.

No céu os deuses se agrupavam em torno de Zeus, principal deus, soberano do mundo, que reinava no monte Olimpo, a mais alta montanha da Grécia. Senhor dos fenômenos atmosféricos, dos rios, da chuva, tudo via, tudo sabia, controlando as ações humanas e vigiando as dos demais deuses. Era protetor de toda a Grécia, embora cada cidade tivesse seu deus especial.

Zeus. Pintura romana em Pompeia, Casa dei Dioscuri. Artistas desconhecidos

Junto a Zeus encontrava-se Hera, sua esposa, deusa do casamento, da maternidade, das crianças e dos lares; seus filhos: Apolo - também chamado Febo - deus da luz solar, das profecias e das artes; Ártemis, inicialmente deusa da claridade lunar, mais tarde protetora das florestas e da caça; Hermes, mensageiro dos deuses, protetor dos pastores, dos viajantes, dos comerciantes, dos ladrões, oradores e atletas; e Héstia, que zelava pela chama sagrada que devia arder em todas as casas, em todas as cidades.

No mar reinava todo-poderoso um irmão de Zeus, Posseidon, a quem os navegantes temiam e pediam proteção.

Posseidon segurando um tridente. Placa coríntia. Artistas desconhecidos

Na terra a natureza obedecia à deusa Deméter, protetora dos agricultores, das colheitas de cereais e frutas; zelava pelos vinhedos outro filho de Zeus, o alegre e expansivo Dionísio.

Nas profundezas subterrâneas dominava, como senhor absoluto e sempre invisível, Hades (também chamado Plutão), que atendia ao misterioso reino dos mortos.

Outros deuses do Olimpo, filhos de Zeus, davam especial atenção a certas atividades humanas: Afrodite, deusa do amor; Palas Atena (nascida da própria cabeça de Zeus), deusa da inteligência, da razão, da sabedoria e da paz; Hefésto, deus do fogo, das forjas e dos ferreiros.

Palas Atena. Detalhe de cerâmica grega. Onésimos

Havia ainda divindades menores: as Musas, acompanhantes de Apolo, inspiravam as diferentes criações artísticas e a investigação científica: Clio, a história; Euterpe, a música; Talia, a comédia; Melpômene, a tragédia; Terpsícore, a dança; Érato, a poesia lírica; Polímnia, a mímica; Urânia, a astronomia; Calíope, a poesia épica e a eloquência. As Horas assistiam o desenrolar das quatro estações; as Graças (Cáritas em grego) - auxiliares de Afrodite - dispensavam cuidados especiais ao reino vegetal; as Parcas (Moiras em grego) fiavam, teciam e cortavam o destino dos homens.

Entre os deuses e os homens os gregos criaram ainda os semideuses, os heróis, tidos como seus antepassados, realizadores de proezas e feitos maravilhosos: Héracles (Hércules em latim), Perseu, Jasão, Teseu, Édipo, Orfeu, inspiraram desde a Antiguidade até os dias de hoje a obra de poetas, escritores, pintores, escultores, compositores.


Perseu transformando Fineu e seus seguidores em pedra, Luca Giordano

A religião era o elo da família, dos habitantes de uma cidade, de todos os gregos, pois o culto religioso desenvolvia-se nas casas, nos templos e nos santuários pan-helênicos, isto é, comuns a todos os helenos. Os gregos pediam favores aos deuses ofertando-lhes alimentos e bebidas (leite, mel, vinho) ou sacrifícios de animais. O sacrifício mais solene era a hecatombe (de hecatón = cem, e bous = boi).

Os gregos buscavam sempre conhecer a vontade dos deuses e, para isso, ora interpretavam sinais vários da natureza (presságios), ora consultavam nos santuários os próprios deuses, que por vezes davam sua resposta (oráculo) por meio de uma sacerdotisa. Um dos mais famosos centros de oráculos foi Delfos, onde uma sacerdotisa do deus Apolo, a Pítia (de Pythón = serpente), transmitia aos homens a resposta divina.

Havia grandes festas religiosas que abrangiam jogos e competições artísticas, procissões, espetáculos musicais e teatrais. Algumas eram anuais, características de certas regiões, como as Panatenéias (em honra de Atena) e as Dionisíacas (em honra de Dionísio), celebradas em Atenas. Outras festas, organizadas em certos santuários pan-helênicos, realizavam-se de dois em dois anos (Neméia, Jogos nemeus; Corinto, Jogos ístmicos), ou de quatro em quatro anos (Delfos, Jogos píticos; Olímpia (Jogos olímpicos). Desses jogos os mais famosos foram os olímpicos, em honra de Zeus, e marcavam o início do calendário grego.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 67-69.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A Bíblia

Epístolas paulinas, século III

"Mas o Senhor está assentado perpetuamente, já preparou o seu tribunal para julgar. Ele mesmo julgará o mundo com a justiça; julgará os povos com retidão. O Senhor será também um alto refúgio para o oprimido, um alto refúgio em tempos de angústia. E em ti confiarão os que conhecem o teu nome; porque tu, Senhor, nunca desamparaste os que te buscam".
 (Salmos, 9: 8, 9, 10)

[...]


A palavra documento vem do latim, a língua falada pelos antigos romanos. Eles chamavam de documentum o objeto que transmitia uma informação ou que ensinava alguma coisa. Hoje, consideramos documento tudo o que é registrado pelo ser humano por escrito ou por meio de sons ou imagens. Assim, um texto, uma escultura, uma música, uma fotografia, um filme, um objeto de uso doméstico, uma ferramenta são documentos. Eles revelam os costumes, os valores e os acontecimentos da história do ser humano.

A Bíblia é um dos documentos escritos mais antigos que existe. E o mais divulgado e conhecido pela humanidade ocidental, pois é a base da religião judaica e da cristã. Mas, como todo documento histórico, precisa ser investigado. A parte mais antiga da Bíblia chama-se Velho Testamento. Nele encontramos a história da criação do mundo e da humanidade por Deus (no Gênesis), a saída dos hebreus do Egito e sua longa viagem até a Palestina (no Êxodo), a história dos reis hebreus (em Reis) e outras tantas.

[...]

Os textos do Velho Testamento não foram escritos como um único livro e nem em uma única época. Eles são uma coletânea de textos de diversos autores que viveram e escreveram em diferentes momentos entre os séculos X e II a.C. Não se conhecem as datas exatas, pois nenhum dos livros traz o ano em que foi escrito e poucos trazem o nome de seus autores.

Durante séculos, a Bíblia não tinha o formato que hoje conhecemos, com todos os seus livros reunidos e encadernados. Seus textos eram copiados em rolos de papiro, pergaminho ou couro, cada um com um trecho do texto original. Para que coubesse todo o texto, era precisa emendar o papiro ou o pergaminho. Alguns chegavam a ficar com seis a oito metros de comprimento. Eram guardados enrolados e seu transporte devia ser muito incômodo.

[...]

No espaço de oitocentos anos de sua criação, os textos originais do Velho Testamento sofreram perdas, alterações, acréscimos e supressões. Passaram pelas mãos de muitos autores, copistas e tradutores. Essas modificações eram feitas de acordo com o público ao qual o texto se dirigia. A Bíblia é um documento religioso e repleto de exemplos morais e de normas de conduta. Muitas vezes, para reforçar essas lições, o copista ou o tradutor retocava a linguagem original. Por exemplo, foi assim que apareceu em uma versão grega a palavra pecado, que não existia em nenhum texto hebraico.

O Velho Testamento foi escrito originalmente, em sua maior parte, em hebraico antigo e alguns poucos trechos em aramaico. Depois foi traduzido para o grego e daí para as línguas atuais. Nesse caminho de tantas traduções, será que o tradutor usou as palavras corretas? Observe estes exemplos:

"E Deus criou uma criatura terrestre".
"E Deus criou o ser humano".
"E Deus criou o homem".

As três frases trazem mensagens diferentes. Tanto os judeus quanto os católicos e os protestantes estão sempre procurando estudar a Bíblia e descobrir cada vez mais o sentido de sua mensagem.

[...]

A Bíblia registrou relatos feitos oralmente e passados de geração para geração durante séculos. Sua linguagem está recheada de palavras da vida cotidiana, com todos os seus exageros, imprecisões e simbolismos. Assim, por exemplo, quando descreve o dilúvio, o autor afirma que ele foi "universal". Na linguagem de hoje, universal significa todo o cosmo, isto é, o nosso planeta, os astros e as galáxias. Seria difícil imaginar uma enchente nessas proporções. Então, a Bíblia mentiu? Não. Na visão dos homens daquela época, o lugar onde eles viviam era o seu universo: o restante, eles não conheciam e, portanto, não existia para eles.

As palavras da Bíblia são empregadas com sentido aproximado, muitas vezes simbólico. No dia-a-dia nós também usamos muitas metáforas e hipérboles. Por exemplo, quando você fala "todo o mundo estava na festa de fulano", ninguém vai entender literalmente que "todos os habitantes do planeta estavam na festa..." (que festa, hein!). Para nós, é claro que "todo o mundo" significa "muita gente". Agora, imagine essa linguagem lida daqui a alguns séculos. Como ela será compreendida?

Por isso, os textos bíblicos precisam ser interpretados, para serem bem compreendidos. E isso ocorre com qualquer documento escrito. É necessário analisá-lo de acordo com a linguagem da época, com o público ao qual era destinado e com a situação histórica em que ele foi produzido.

RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2002. p. 130-3.