"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Os mitos dos povos primitivos

Pajé, E. Goodall

Os mitos, a religião, foram, em princípio, a forma que o homem encontrou para tentar explicar a origem da terra, sua própria origem. É através das crenças e mitos que o homem primitivo passa a sua cultura para seus descendentes, além de utilizá-los como uma forma de manter o grupo unido, fiel a suas tradições. [...] na medida em que todos os membros de uma sociedade se sentiam fiéis ao mesmo ancestral, entendiam que todos tinham uma origem comum, aumentava seu sentimento de unidade.

Além disso, o respeito às tradições deixadas pelos antepassados permitem que a tribo organize o comportamento do grupo, fazendo com que todos respeitem as regras básicas, para que a tribo possa sobreviver. Por exemplo: para o homem Tonga (tribo africana do sul de Moçambique), alguma coisa de ruim pode lhe acontecer, caso não tenha cumprido devidamente os ritos determinados pela tradição com relação aos seus antepassados. Se procurar um feiticeiro para aconselhá-lo, este certamente dirá: "Teu antepassado reclama o rito que não foi cumprido". Para este homem, a importância do seu antepassado é tão grande, é tão presente em sua mente, que muito provavelmente o rito cumprido solucionará o seu problema. Ele se sentirá melhor, pois seu antepassado o perdoou. Ele agora está integrado ao seu grupo novamente.

Os mitos dos povos primitivos estão cheios de sabedoria.

Alguns deles nos dão hoje a explicação correta sobre o tipo de plantas que podem ser usadas para a alimentação, quais podem ser usadas na medicina, além de nos relatar a origem de vários grupos, suas tradições e sua história.

Durante muito tempo, os homens modernos desprezaram os mitos e as religiões do povo primitivo. Achavam que todo homem que não vivesse dentro de uma sociedade moderna não devia ser levado "a sério".

Entendiam sua religião, seus ritos, apenas como uma maneira primitiva de "botar para fora" as suas angústias e medos diante de uma natureza desconhecida e, por isso, ameaçadora.

Demorou muito para que os historiadores e outros pesquisadores de nossa época percebessem que o homem primitivo, associando os seus conhecimentos práticos, culto aos antepassados e magia, exprimiam um conhecimento sobre a sua realidade, os homens e a natureza.

Foi muito difícil para o homem moderno entender que podia aprender muito com as crenças e mitos do homem primitivo. Foi difícil perceber que, para entender como viviam, era preciso entender a fundo sua religião. Esta tarefa foi muito dificultada pelos países que exploravam os povos que viviam em uma organização social igualitária, seja na América, seja na África. Estes justificavam sua dominação, dizendo que todas as manifestações destes grupos eram selvagens, primitivos, ignorantes, incapazes de construírem por si só o seu caminho. Por outro lado, os pesquisadores e outros cientistas, que não aceitavam a dominação e exploração exercida contra estes grupos, na tentativa de denunciar os "civilizados" e mostrar que estes não passavam de exploradores, e que seu único interesse em relação a estas comunidades era utilizá-las para se enriquecer cada vez mais, acabavam por cair em outro extremo: analisavam a vida social e política destes grupos como sendo um verdadeiro paraíso! Sem problemas, conflitos ou injustiças, e que tudo de errado, que quebrava a harmonia perfeita dos povos primitivos, tinha sido trazido pelo invasor.

Ora, jamais existiu uma sociedade assim, sem conflitos!

É importante lembrar que se, por um lado, as crenças representavam conhecimentos sobre a realidade que permitiam ao homem relacionar-se com a natureza e entre, por outro lado, algumas crenças e ritos, por estarem ligados a contradições sociais profundas, ou a alguns fenômenos naturais que atemorizavam aos homens, ao invés de permitir que o homem cada vez mais ultrapassasse os desafios que surgiam, o impediam, colocando regras respeitadas muitas vezes pelo medo, que o homem aceitava sem jamais questioná-las.

Os mitos e crenças de que falamos, são formas que o homem primitivo encontrou para explicar, regular e manter o seu mundo. O mundo do homem primitivo. Neste tipo de sociedade, onde não há a exploração do homem pelo homem, e a divisão do trabalho está pouco desenvolvida, as explicações que os homens fazem do seu mundo estão ligadas à sua vida. Não há separação entre o trabalho e a cultura, o trabalho e o prazer etc. Mas todos os homens procuram explicar o mundo em que vivem. E a maneira pela qual constroem esta explicação vai variar de época para época. As ideias que os homens produzem, as explicações do mundo que elaboram, estão ligadas à sua atividade material, à sua maneira pela qual o homem se organiza para sobreviver na sua relação com outros homens.

Com o surgimento da sociedade de classes, e a divisão entre os que produzem e os que não produzem, a unidade entre o pensar/saber e fazer vai aos poucos desaparecendo.

"A produção de ideias, de representações e da consciência está em primeiro lugar, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real".

"As ideias da classe dominante são ideias dominantes em cada época; em outros termos, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe com isso, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual".

A classe dominante tem de "representar" os seus interesses como os interesses de todos os membros da sociedade - tem de dar às suas ideias a forma de universalidade e representá-las como as únicas racionais e válidas.

Às ideias, à moral, à religião, aos costumes etc chamamos de ideologia.

A ideologia faz com que as ideias expliquem as relações sociais e políticas, tornando impossível perceber que tais ideias só são explicáveis pela própria forma de sociedade e da política.

BARBOSA, Leila Maria Alvarenga; MANGABEIRA, Wilma Colonia. A incrível história dos homens e suas relações sociais. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 52-5.

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