"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A guerra total

O senador estadunidense Alben W. Barkley, membro do comitê que investigava os crimes nazistas, ao lado de corpos de prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha. 24 de abril de 1945. Fotógrafo desconhecido.

Mais ainda que a Grande Guerra, a Segunda Guerra Mundial foi travada até o fim, sem ideias sérias de acordo em nenhum dos lados [...]. Era, de ambos os lados, uma guerra de religião, ou, em termos modernos, de ideologias. Foi também, e demonstravelmente, uma luta de vida ou morte para a maioria dos países envolvidos. O preço da derrota frente ao regime nacional-socialista alemão, como foi demonstrado na Polônia e nas partes ocupadas da URSS, e pelo extermínio dos judeus [...] era a escravização e a morte. Daí a guerra ser travada sem limites. A Segunda Guerra Mundial ampliou a guerra maciça em guerra total.

Suas perdas são literalmente incalculáveis, e mesmo estimativas aproximadas se mostram impossíveis, pois a guerra matou tão prontamente civis quanto pessoas de uniforme, e grande parte da pior matança se deu em regiões, ou momentos, em que não havia ninguém a postos para contar, ou se importar. [...] De qualquer modo, que significa exatidão estatística com ordens de grandeza tão astronômicas? Seria menor o horror do holocausto se os historiadores concluíssem que exterminou não 6 milhões mas 5 ou mesmo 4 milhões? [...] Que significa para o leitor médio desta página que, de 5,7 milhões de prisioneiros de guerra russos na Alemanha, 3,3 milhões morreram? A única coisa certa sobre as baixas da guerra é que levaram mais homens que mulheres. [...] Os prédios podiam ser mais facilmente reconstruídos após essa guerra do que as vidas dos sobreviventes. [...]

Tanto a totalidade dos esforços de guerra quanto a determinação de ambos os lados de travá-la sem limites e a qualquer custo deixaram a sua marca. Sem isso, é difícil explicar a crescente brutalidade e desumanidade do século XX. [...] O aumento da brutalização deveu-se não tanto à liberação do potencial latente de crueldade e violência do ser humano, que a guerra naturalmente legitima [...]. Outro motivo era a nova impessoalidade da guerra [...] A tecnologia tornava suas vítimas invisíveis, diferente de guerras anteriores com as pessoas evisceradas por baionetas ou vistas pelas miras das armas de fogo. Diante dos canhões permanentemente fixos da Frente Ocidental estavam não homens, mas estatísticas. [...] Lá embaixo dos bombardeios aéreos estavam não as pessoas que iam ser queimadas e evisceradas, mas somente alvos. Rapazes educados, que certamente não teriam desejado enfiar uma baioneta na barriga de uma jovem aldeã grávida, podiam com muito mais facilidade jogar altos explosivos sobre Londres ou Berlim ou bombas atômicas em Nagasaki. [...] As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais.

Assim o mundo acostumou-se à expulsão e matança compulsórias sem escala astronômica. [...] Em resumo, a catástrofe humana desencadeada pela Segunda Guerra Mundial é quase certamente a maior da história humana. O aspecto não menos importante dessa catástrofe é que a humanidade aprendeu a viver num mundo em que a matança, a tortura e o exílio em massa se tornaram experiências do dia-a-dia que não mais notamos.

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 50, 56-8.

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