"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 9 de maio de 2015

Reascensão da barbárie: violências e feitiçaria na Idade Moderna

A fraqueza do controle de si dá aos impulsos e à vontade de ultrapasse formas bem distanciadas dos ideais generosos do humanismo. A violência ocorre em toda parte, incontestavelmente mais surpreendente em populações que, de resto, teriam tendência em refinar-se. Nas relações sociais a força desempenha um papel importante mas tende a recuar no decurso do século XVII.

O duelo após o baile de máscaras, Thomas Couture

Os Grandes fazem-se acompanhar de um séquito armado, tão eficiente quanto ostentatório. Os castelos estão armados. Na Inglaterra, a bela época dos arsenais particulares vai de 1550 a 1620 (L.Stone). O século XVII assiste ao recuo das tropas senhoriais. Na França, a ordenança de Henrique III, que reserva ao rei o direito exclusivo de recrutar homens de armas (1583) é mal aplicada. Richelieu tem de destruir os castelos fortificados distanciados das fronteiras, mas os palácios nobiliários possuem salas de armas. De resto, é admitido garantir-se a segurança pessoal pelas armas na própria casa ou em viagem. Produz-se, todavia, uma mudança de que é testemunha a voga dos duelos, que representam um progresso na medida em que substituem a emboscada. As ordenações contra os duelos conseguem apenas reduzir-lhes a frequência. O duelo, forma nobiliária do combate singular, tem equivalentes em todos os escalões da sociedade.

A violência dos costumes manifesta-se também pelo número de raptos e retiradas pela força, que cresce quando afrouxam os laços familiais. O casamento contrário à vontade dos pais continua a ser feito. O concílio de Trento e o Estado outorgam ao padre, nos países católicos, um papel mais importante na celebração do matrimônio. A instituição dos registros paroquiais faz dele, igualmente, um verdadeiro oficial de estado civil.

Um último testemunho do retrocesso relativo da violência em meados do século XVII é o número crescente de processos nos Estados do Ocidente. Na Inglaterra, num século, multiplicaram-se de seis a dez (L. Stone).

Feitiçaria, Dosso Dossi

A feitiçaria e os processos dela decorrentes representam um mal endêmico cujo apogeu se situa entre o fim do século XVI e a metade do XVII. Embora certas regiões sejam mais atingidas do que outras (Lorena, Franco-Condado-Labourd), a feitiçaria constitui um fenômeno geral que atinge, simultaneamente, países católicos e países protestantes, regiões devastadas pela guerra e regiões poupadas.

É característico o fato de que os juízes e todos os espíritos superiores acreditem nas constantes intervenções do diabo. Jean Bodin, humanista, precursor das ciências políticas, escreve De la Démonomanie des sorciers (1580) e, em seu cargo de juiz, se revela um temível caçador de feiticeiras. As enormes lacunas do conhecimento científico deixam um lugar considerável ao sobrenatural. No domínio do inexplicável, tudo o que conduz ao bem é atribuído a Deus e tudo o que conduz ao mal, a Satã. Os que atuam por vias incompreensíveis: curandeiros, algebristas e, do mesmo modo, todos aqueles em que não se confia, passam por pessoas que obtêm do diabo o poder de praticar sacrilégios. O murmúrio público acusa a torto e a direito. Desde que a justiça civil dele se apodere, a sorte do acusado está quase fixada. Armado de um tratado de demonologia, o juiz faz perguntas que sugerem as respostas ao infeliz esgotado pelo cativeiro, pelos gravosos testemunhos e pela tortura. A Igreja, naturalmente, só deseja salvar o incriminado e curá-lo pelos exorcismos. Mas se ele confessa delitos, ela nada mais pode fazer em seu favor. Por fim, o acusado, alucinado, não deixa de denunciar numerosos cúmplices. Dessa maneira, centenas de infelizes são queimados na região de Labourd, em 1609, e vários milhares nas margens ocidentais do Império.

Um outro aspecto do mal é a possessão, o contrário do misticismo. A obsessão e a histeria são postas na conta do demônio e vêm de um filtro ou de um sortilégio.

O "possesso" faz-se exorcizar em público e acusa. Só alcança o repouso pela morte de seu "algoz". As vítimas dos processos de feitiçaria o mais frequentemente são mulheres, pastores, algumas vezes padres; as dos processos de possessão são amiúde padres. Entretanto, a publicidade dada a tais processos acabam por despertar a desconfiança de alguns médicos. O processo de Loudon no qual ursulinas, inclusive a superiora, se pretendem vítimas do Padre Urbain Grandier, que os juízes condenam à fogueira, suscita controvérsias. Começa-se a falar de doença do espírito. A partir de 1640, o Parlamento de Paris renuncia à perseguição da feitiçaria. Deve-se esperar por 1660 para que, na França, ocorra um refluxo e pela ordenança de 1682 para que a feitiçaria não seja mais considerada como um delito em si mesma. Mas continua a haver juízes retardados. Nos demais países, o recuo dos processos de feitiçaria é mais lento ainda.

O tímido refluxo da violência e dos processos de feitiçaria em meados do século XVII não deve fazer esquecer que todo o período de 1580-1680 se coloca sob o signo desses dois males. Wallenstein exprime bem a inquietação da época: alternadamente, ambicioso, violento, ligando finanças e política, herói de cruzada católica, personagem faustoso circundado de artistas e, ao mesmo tempo, presa derrisória dos adivinhos que, finalmente, lhes paralisam a ação.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 133-5.

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