"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 19 de março de 2015

A Europa depois de Roma

Guerreiros germânicos, Philipp Clüver

Na Europa, os séculos anteriores e posteriores à queda do império ocidental formaram um período tumultuado, à medida que onda após onda de invasores, eles próprios empurrados por outros ciclos de povos entrando na Europa pela Ásia, abria caminho através do continente procurando uma residência permanente.

Uma consequência da fragmentação do império ocidental, e do povoamento das regiões setentrionais pelos recém-chegados, foi o surgimento de novos idiomas. [...] o latim falado nos anos de decadência do império era reconhecivelmente a mesma língua. À medida que o império cedia terreno para uma variedade de chefetes independentes, a língua se libertava. [...] Ao longo dos oito ou nove séculos seguintes, eles se transformaram nas línguas românicas, como o italiano, o espanhol, o português, o francês e o romeno. [...] Mais ao norte, contudo, onde os invasores se viram em territórios esparsamente povoados, não houve pressão para adotar os hábitos de fala da população local e seus descendentes, separados por rios, mares e montanhas, gradualmente desenvolveram dialetos que mais tarde se tornariam o holandês, o alemão e o sueco.

Nas terras baixas da Bretanha, onde uma cultura romana floresceu por séculos, seria de se esperar que os recém-chegados adotassem p latim [...]. Mas isso não aconteceu. Eles mantiveram sua língua germânica, que acabaria se tornando o que conhecemos com inglês. [...].

Ambos os grupos linguísticos - o germânico e o latim - eram membros da família indo-europeia, que se originava de algum lugar nas regiões da estepe onde a Europa se encontra com a Ásia. A leste das terras ocupadas por povos falantes de germânico, os eslavos praticavam um terceiro grupo de dialetos indo-europeus, os predecessores do tcheco, servo-croata e russo. [...]

Uma sucessão de epidemias, que provavelmente incluía varíola, sarampo, gripe e peste, atacou as terras densamente povoadas em torno do Mediterrâneo do século II ao VII. Elas sem dúvida desempenharam um proeminente papel no enfraquecimento do império ocidental. Durante esses séculos, ondas de povoamento desembocaram nas regiões esparsamente povoadas ao norte. Como em toda parte, povoamento significava agricultura. [...] Esses povos contavam com o conhecimento acumulado das populações existentes no norte e dos povos civilizados do sul, e suas novas terras tinham solo fértil e chuva abundante. O clima frio favorecia trigo, cevada, aveia e centeio. Além disso, a chuva constante significava pasto vistoso, que significava vacas felizes. [...] À medida que derrubavam florestas e preparavam novas terras para cultivar, a produção de alimento cresceu e sua população aumentou ainda mais. [...]

[...]

A nova tecnologia mais importante foi o pesado arado de duas rodas, com uma lâmina de ferro que cortava a camada superior de grama e solo, uma relha de ferro e uma aiveca que abria a leira. Com ela era possível trabalhar o terreno mais duro. E, o mais importante, enterrava e matava as ervas daninhas. Ao criar leiras, formava canais para que a água da superfície fosse drenada. [...]

Mas as consequências da introdução do arado pesado foram muito além. Em solos pesados, ele requeria mais de oito bois, comparado com a simples parelha que até então fora suficiente. [...] esse novo arranjo significava que tarefas como semear, gradar e colher também necessitavam de uma organização cooperativa, o que só podia ser feito sob os auspícios de um conselho aldeão. [...] Ele introduziu entre as pessoas a ideia de que os costumes e as instituições não eram imutáveis; acostumou-se ao pensamento, e à prática, do autogoverno, e forneceu uma drástica ilustração da mudança tecnológica. [...]

O número de inovações importantes ocorridas na chamada Idade das Trevas europeia é grande [...]:

1. A implementação da rotação de culturas com três áreas em lugar da rotação precedente, com duas. [...]
2. A introdução do arreio em colar inventado na China, que tornou possível pela primeira vez aos cavalos da Europa puxar cargas pesadas. [...]
3. A introdução da ferradura e do balancim [...] que respectivamente protegia a pata do animal e possibilitava puxar grandes carros.

Mas não foi apenas na agricultura que esses séculos mostraram entusiasmo pela inovação. Em 1044, encontramos o primeiro moinho de marés de Veneza. O Domesday Book, levantamento feito sob as ordens de William I, rei da Inglaterra em 1086, revelou que havia 5 mil moinhos d'água só na Inglaterra. [...]

Enquanto a tecnologia transformava a vida das pessoas, mudanças ocorriam na estrutura social. Nas caóticas condições criadas com o fim da soberania romana e as ondas migratórias, as pessoas procuravam proteção para suas vidas e propriedades. Ao mesmo tempo, indivíduos ambiciosos tiravam vantagem dessas condições para aumentar sua riqueza e influência. A partir desse encontro do desejo por segurança com a avidez pelo poder, brotou gradualmente um novo quadro de composições sociais: a instituição conhecida como feudalismo. Em sua forma mais desenvolvida, consistiu em uma hierarquia de garantias e obrigações mútuas. No nível mais baixo estava o camponês, que tinha o direito de trabalhar, manter e legar sua terra em troca da obrigação de prestar serviço ao seu superior, que podia ser o senhor de uma propriedade ou o abade de um mosteiro. [...] O direito à proteção do camponês por parte de seu senhor criava uma obrigação recíproca sobre esse mesmo senhor de lhe assegurar proteção.

Enquanto o sistema do feudalismo tomava forma, uma batalha pelo poder de um tipo diferente tinha lugar: a luta pelo domínio entre a Igreja e o Estado. [...]

[...]

Os papas não estavam apenas engajados em uma luta contínua pela supremacia com os soberanos seculares do continente; viviam em conflito pela supremacia com a Igreja oriental baseada em Constantinopla [...]. O ano de 1054 testemunhou uma ruptura entre os dois, após prolongada disputa teológica. A partir daí, Roma ficou esperando por uma chance de subjugar a rival oriental.

Quarenta anos depois, a oportunidade se apresentou. Os seldjúcidas - um grupo de tribos turcas muçulmanas sunitas - haviam surgido antes vindos da Ásia e tomando controle da Pérsia (Irã), Mesopotâmia (Iraque) e Síria setentrional. Teoricamente, estavam sujeitos à soberania espiritual do califa de Bagdá, mas seu imperador, o sultão, era o efetivo soberano de toda a região. Após conquistar a Armênia, eles haviam se voltado para o império bizantino, e infligido uma sangrenta derrota sobre seus exércitos [...]. No ano seguinte, eles varreram a Palestina e a Jerusalém ocupada. Aí massacraram milhares de muçulmanos xiitas. Menos tolerantes que seus predecessores árabes, eles também fecharam a cidade para as peregrinações cristãs. Por volta de 1092, postaram-se às margens do Bósforo, em posição para atacar Constantinopla. [...]

O papa Urbano II, sabia aproveitar oportunidade quando surgia. [...] Havia outros benefícios de uma campanha militar contra os turcos. A crescente prosperidade e o aumento populacional na Europa ocidental e setentrional haviam criado uma classe de jovens inquietos de boa estirpe, com tempo de sobra, que precisavam de escape para a agressividade juvenil. Sua inquietação encontrara expressão em mesquinhas guerras e rusgas que se tornaram uma grave preocupação para as autoridades eclesiásticas. Se em vez disso pudessem ser persuadidos a combater os turcos, o povo que ficava para trás podia alimentar esperanças de uma existência mais pacífica. Isso funcionara com o islã, quatrocentos anos antes. A primeira onda de guerra santa sob a liderança Maomé fora parcialmente inspirada na necessidade de encontrar alívio para os instintos belicosos dos jovens membros tribais cujos feudos haviam tornado a vida do povo árabe miserável.

Para os jovens em questão, a oportunidade de matar com consciência limpa, e conquistar butins no processo, não precisou de grande promoção. E uma agora próspera cristandade ocidental dispunha dos recursos para montar o tipo de expedição que o papa tinha em mente.

Em 18 de novembro de 1095, Urbano convocou um conselho na cidade de Clermont, no sul da França. Em uma apinhada assembleia ao ar livre, proferiu um dos discursos mais graves da história europeia, Ele conclamou seu público a decretar uma trégua em suas disputas, a voltar as energias belicosas contra os turcos, a acorrer em auxílio de seus companheiros cristãos no leste e a reabrir a cidade santa de Jerusalém para as peregrinações cristãs. A reação ao seu discurso foi entusiástica. Quatrocentos anos após Maomé, a jihad - conflito sagrado - voltava a ser apregoada. Mas dessa vez os guerreiros marchavam ao som de um hino diferente.

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 139-146.

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