"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Estética no fim do medievo: Contradições da vida moral

Cavaleiros medievais, Codex Manesse, entre 1305-1315, Meister des Codex Manesse

Angústia da existência e aspiração de uma vida melhor, todas as hesitações e todos os contrastes que marcam o pensamento filosófico e a vida religiosa encontram-se nos séculos XIV e XV, tanto na expressão da vida social como nas manifestações da arte. Abriu-se debate entre o sensível e o racional, a espontaneidade e a rebusca, a brutalidade e a afetividade. Nenhuma tendência das que se afirmam faz antever a resposta a este debate.

Seria fácil compor, utilizando os arquivos judiciários e os textos moralistas mal-humorados – neste tempo em que florescia o gênero dos Sonhos e das Lamentações -, um quadro exageradamente negro dos costumes da sociedade cristã. Era a época da peste e da guerra, ambas endêmicas. Tratar-se-ia de uma sociedade “fora dos eixos”, que perdera todo o pudor, fazendo gala de seus vícios e brutalidades, próxima em geral da demência, passando sem transição do crime cínico à penitência piegas, glorificando-se por vezes das suas ações torpes e respirando deliciada o odor dos túmulos? Muitos traços desta pintura romântica, ora trágica, ora picaresca, provém de uma ilusão de óptica. Efetivamente, devemos observar, de um lado, que os progressos dos espírito laico assim como da classe burguesa haviam [...] desenvolvido o gosto pela sátira social, pela maior liberdade de expressão e por um realismo menos embaraçado com as convenções. De outro, como se acentuava o contraste entre os costumes, sempre brutais, e o luxo crescente das classes elevadas, as contradições morais ainda ressaltavam mais vivamente.

Na sua vida, em geral precária e curta, os homens do século XIV não se embaraçavam com as próprias indignidades nem respeitavam as alheias. A inauguração em Hamburgo, em 1375, do primeiro manicômio será uma prova de agravamento das doenças mentais? De qualquer forma, é inegável que nenhuma corte deixava de possuir os seus loucos e anões; não havia festas populares onde eles não aparecessem: eram incluídos entre os animais dos circos. Como todos os seus predecessores, há séculos, os reis e os senhores não sabiam moderar suas violências; os súbitos ataques da raiva do cavalheiresco João, o Bom ou do afável Eduardo III, os acessos de furor de Filipe, o Bom, que se acalmava andando a cavalo, até o esgotamento, na floresta de Soignes, das crises de “melancolia” do Temerário são comuns a todos aqueles cuja vida ora guerreira, ora cheia de refinamentos não incitava a controlar as paixões. Froissart, embora seja um admirador cego da classe dos cavaleiros, confessa que “altos príncipes e altos senhores... seriam como que animais se não existisse o clero”. A atração das ciências ocultas difundidas largamente pelos próprios homens da Igreja, inclinados demais a denunciar um mal que viam em toda parte, é um indício de que, nestes tempos perturbadores, se procuravam aliados em todas as forças sobrenaturais ou infernais. Henrique de Transtâmara nada empreendia sem consultar o seu necromante de Toledo; dizia-se que um espírito familiar de Gaston-Phoebus, Conde de Foix, o avisava dos acontecimentos no próprio instante em que estes se desenrolavam. Quando um homem tão equilibrado como Gérson achava oportuno escrever um tratado destinado a afastar suas irmãs das infelicidades do casamento, fazia-o tanto como eco da antiga maldição monástica, reprovando o ato da carne, como para protestar contra as licenciosidades e aberrações de que era testemunha. Destes excessos, os moralistas extraíam uma condenação absoluta da vida secular, desde o romance satírico que acusa todos os contemporâneos de passar o tempo “assoando Fauvel” – o asno vermelho símbolo de todos os vícios – até às poesias de Eustache Deschamps, maldizendo aquele.

Temps plain d’orreur qui tout fait faussement
Age menteur, plain d’orgueil et d’envie.¹

Seu pessimismo tornava-se ainda mais forte perante as paixões coletivas que assaltavam prontamente as multidões urbanas. Estas ora choravam nos sermões, recebendo os sacramentos com fervor e expulsando as mulheres de vida fácil por exortação de um pregador (tolerando-as no entanto logo no dia seguinte), ora se revoltavam em “comoções” sangrentas, às quais, aliás, se mesclavam curiosamente os seres celestes. Assim, por ocasião das chacinas da guerra civil, em 1413 e 1418, os rebeldes parisienses colocaram sobre as imagens dos seus santos um chapéu largo, dos usados na Borgonha. Entretanto, as distrações populares assumiam freqüentemente foros de revoltante brutalidade, como acontecia com os espetáculos, prolongados à vontade, das execuções capitais, ou como certo torneio de cegos, realizado em Paris, em que estes se chacinavam a pauladas. Em todas as cidades existiam malandrins que de noite dominavam as ruas escuras. Em Paris havia o “reino dos maltrapilhos”, entre os quais os “francos burgueses”, cujo nome procedia de sua recusa de participar nos encargos comuns. A guerra provocou a subida à superfície, vindos dos covis, destes bandos de ladrões, assaltantes e assassinos; os coquillards² do século XV chegam a injuriar o próprio emblema dos peregrinos de Santiago.

Se as paixões são vivas e as dificuldades de uma inquieta existência incitam os homens a fazer fortuna o mais depressa possível – os coletores de impostos, cambistas e comerciantes de todos os gêneros são os mais apressados e também os mais frequentemente acusados de fraudes e concussões -, devemos esquecer o “burguês honesto” e o “pobre trabalhador”, cuja existência só conhecemos quando, tendo-se afastado da boa conduta, solicitam em termos chorosos as respectivas cartas de remissão. Existem duas maneiras de julgar o tempo em que vivemos ou condená-lo sem apelo, como fazem os moralistas e os satiristas, ou acomodar-se à situação com bonomia, sem esconder as fraquezas, criando uma moral temperada que, rechaçando qualquer exagero, concede o devido lugar ao prazer e ao interesse. Dentro da primeira forma integram-se, na Inglaterra, a crítica social de um Langland, cuja Visão de Piers Plowman se inspira nas prédicas populares; à segunda pertence a ironia sorridente de um Chaucer, nos seus Contos de Cantuária, obra de um homem de gosto cosmopolita, respeitador das convenções sociais.

¹ Tempo cheio de horrores que faz tudo falsamente
Era mentirosa, cheia de orgulho e inveja.

² Bandos de mendigos cujo nome deriva de suas vestes cobertas de conchas.


PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 297-300. (História geral das civilizações, 7).

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