"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 31 de janeiro de 2015

O espírito do Santo Ofício da Inquisição continua?

[...]


Durante três séculos, o Estado e a Igreja privaram o colono luso-brasileiro da livre crença e da liberdade de consciência, mantendo a colônia sem imprensa, sem universidade, sem ciência, sem novelas, sem arte e sem livros, a não ser aprovados pela Igreja. Foi a Inquisição responsável pela estagnação intelectual da vida colonial, centrando em torno da Igreja, da missa, do sermão, das procissões, todas as diretrizes da vida, e incutindo uma obsessão pelo sentimento de pecado, que marcou todos os homens com o estigma da culpa. [...]

Condenados pela Inquisição, Velázquez

Apesar de todas as promessas de punição, a Inquisição não conseguiu fazer calar as inquietações, a solidariedade e a busca de novas mensagens, e as heresias se propagaram por toda a América. As mais autênticas expressões de fé, não oficiais, permearam toda a história colonial, desaguando algumas fortes, outras apagadas, no próprio século XX.

A América colonial foi vítima da repressão, de perseguições, de extermínios. As políticas totalitárias da Espanha e de Portugal, que anteciparam cinco séculos os totalitarismos do século XX, não podiam reconhecer e tolerar diferenças de pensamento e de fé, uma vez que havia interesses econômicos envolvidos.

Mesmo sem sucesso, milhares de portugueses e espanhóis lutaram, silenciosos, num campo de batalha, espremidos entre um poder absoluto e um universo impregnado de fanatismos, superstições e crendices. A resistência dos colonos conversos, dos índios, dos negros, dos hereges e dissidentes à imposição forçada da religião, dos valores, dos costumes, foi calada e clandestina. Os hereges Garcia da Orca, Antonio José da Silva, Padre Antonio Vieira, Juan de Vives, Frei Luís de Leon, Fernando Rojas e tantos outros foram a verdadeira glória de Portugal e da Espanha, e não seus religiosos, guerreiros e governantes.

O recrudescimento em nossos dias dos nacionalismos, do antissemitismo, dos ódios raciais, dos antagonismos religiosos, da xenofobia, mostra que, apesar de todo o progresso técnico, os homens ainda carregam consigo, viva, a herança destrutiva do passado.

[...]

O Tribunal da Inquisição, Goya

O Santo Ofício da Inquisição, que queimou Giordano Bruno ¹ e perseguiu Galileu ², passou a denominar-se Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Esta Congregação advertiu e puniu numerosos teólogos contemporâneos, que têm questionado diferentes aspectos da doutrina católica e a infalibilidade da Igreja.. Todas as medidas restritivas receberam a aprovação do papa João Paulo II.

¹ O que era semente faz-se erva, e do que era erva faz-se a espiga; do que era espiga faz-se o pão, do pão quilo, do quilo sangue, deste semente e desta embrião, deste homem, deste cadáver, desta terra, desta pedra. (Giordano Bruno, Diálogos)

² A filosofia está escrita neste imenso livro que se nos abre continuamente diante dos olhos (quero dizer o universo), mas não podemos entendê-lo, se antes não aprendermos a compreender a língua e a conhecer os caracteres nos quais está escrito. Está escrito em língua matemática, e os caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas, sem os quais meios é impossível entender humanamente qualquer palavra sua; sem eles é um inútil vagar por escuro labirinto. (Galileu)

Os principais teólogos acusados de heresia foram Edward Schillebeeckx,  professor de Teologia da Universidade Católica de Nijmaegen, Holanda, e Hans Küng, professor de Dogma e Teologia Ecumênica da Universidade do Estado, Tubingen, Alemanha. No Brasil foi acusado e punido o teólogo Frei Leonardo Boff.

Desde 1957 Hans Küng entrou em choque com o Vaticano, por ter posto em dúvida a infalibilidade da Igreja e criticado a debilidade da doutrina papal sobre o controle da natalidade. Küng acredita que a Igreja "devia aprender por seus próprios erros". Chamado a Roma em 1971, para justificar as suas ideias, respondeu que só iria se pudesse ver todo o seu processo e escolher seus próprios advogados. A Congregação recusou. Nessa atitude vemos a repetição do procedimento da Inquisição ibérica, na qual os réus não tinham conhecimento do seu processo e os únicos advogados admitidos eram homens internos da Inquisição. O próprio Küng acusou os membros da Congregação de agirem de acordo com o espírito da Inquisição. Küng também foi punido por dizer que a ressurreição não podia ser um acontecimento histórico, a virgindade de Maria era uma lenda, que não se devia identificar Jesus com Deus e que Jesus nunca se intitulou Messias. O próprio papa João Paulo II, em 18 de dezembro de 1979, declarou que Hans Küng, nos seus escritos, afastou-se da verdade integral da fé católica e portanto não podia mais ser considerado um teólogo católico, nem atuar como tal num papel de professor.

Os crimes contra a moral, que foram sempre preocupação central da Igreja, e deram motivo à constante pela Inquisição espanhola e portuguesa, também recebem atualmente, da Congregação para a Doutrina da Fé, um especial interesse. Autores como o reverendo Charles Curran, professor de Teologia Moral da Universidade Católica de Washington, D.C., autor de Sexual and Medial Ethics e Tradition in Moral Theology (Notre Dame University Press, 1978 e 1979, respectivamente), o jesuíta John J. Mc Neill, autor da obra The Church and the Homossexual (Sheed, Andrews and McMeel, 1976) e o reverendo Anthony Rosnik, coautor de Human Sexuality: New Directions in American Though (Paulist Press, 1977), foram seriamente advertidos e criticados pela Congregação.

Os pensadores religiosos estão divididos hoje, como estiveram divididos durante a Inquisição ibérica.

NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 7-9, 103-5. (Coleção Tudo é História, 49).

Nenhum comentário:

Postar um comentário