"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 28 de dezembro de 2014

História de Adriano e do jovem grego

Bustos do Imperador Adriano e de Antínoo. Artistas desconhecidos. 
Foto: SanGavinoEN

De acordo com a Historia Augusta, Adriano compôs pouco antes de sua morte o seguinte poema: 

Animula, vagula, blandula
Hospes comesque corporis
Quae nunc abibis in loca
Pallidula, rigida, nudula,
Nec, ut soles, dabis iocos...

Amanhecia no Nilo, no Outono do ano 130 a.C., quando o imperador Adriano acorda bruscamente com os gritos e lamentos dos seus servos. Sai da tenda preocupado e dirige-se ao rio e fica estupefato com o que vê: uns pescadores egípcios arrastam para a margem o corpo inchado e lívido de um jovem com cerca de vinte anos. Adriano dá um grito de dor e ajoelha-se junto do cadáver, beijando entre lágrimas o rosto azulado que ainda conserva uma notável beleza.

Esta trágica cena do suicídio de Antínoo, o jovem amante do maduro imperador, manteve-se através dos séculos como exemplo emblemático do amor homossexual romântico e infeliz. Em meados do século XX, a escritora francesa Marguerite Yourcenar (lésbica) recupera a complexa figura do governante bético e do seu amor pelo adolescente grego, numas imaginárias, mas bem documentadas, Memórias de Adriano (1951). O livro foi um verdadeiro êxito de vendas e, nas suas múltiplas edições e traduções, o público tomou conhecimento da existência de um imperador romano cujo jovem amante se suicidou por amor.

“Amor, o mais sábio dos deuses... Mas o amor não era responsável por aquela negligência, por aquelas durezas, por aquela indiferença misturada com a paixão como a areia com o ouro que o rio arrasta no seu curso, por aquela rude cegueira de um homem demasiado feliz e que envelhece. Como era possível eu ter sido tão densamente satisfeito? Antínoo estava morto. Longe de amar de mais como Serviano certamente pretendia naquele momento em Roma, eu não o tinha amado bastante para forçar aquela criança a viver”. (Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano)

Públio Élio Adriano nasceu em Itálica, cidade bética, perto da actual Sevilha, a 24 de Janeiro do ano 76 da nossa era. Era patrício do futuro imperador Trajano, ainda parente do seu pai. Desde criança que se afeiçoou à cultura e à arte helênicas e, por isso, os seus companheiros de então apelidavam-no de o Grego. Adriano ficou órfão aos dez anos e a sua tutoria ficou a cargo de um amigo da família chamado Acílio Attiano, representando o parente mais próximo, que era Marcos Úlpio Trajano. Pouco tempo depois, Trajano viajou para a Hispânia como comandante das legiões romanas. A sua mulher, Plotina, afeiçoou-se ao pequeno afilhado e levou-o com eles no seu regresso a Roma.


Imperador Adriano. Artista desconhecido. Ca. 127-128 d.C.

Na capital do Império, sob a protecção de Trajano e de Plotina, Adriano seguiu integralmente as passadas que eram esperadas de um jovem ambicioso e de boa família, cujo destino manifesto era o Senado. Em 97, servia como tribuno militar na Moésia, junto ao Danúbio, quando recebeu ordem para se dirigir à Gália para informar Trajano que o imperador Nerva o tinha adoptado como afilhado. Essa adopção, que na prática equivalia a designá-lo como sucessor, correspondia às manipulações palacianas do influente Lúcio Licínio Sura, amigo íntimo e provável amante de Plotina, que, como ela, sentia um enorme afecto por Adriano. Foi ele que o escolheu para levar a boa nova a Trajano, contra a opinião de Júlio Serviano, intrigante cunhado do futuro imperador. Nerva morreu no ano seguinte e Sura teve de fazer uma nova pirueta política para se assegurar de que seria Trajano a ocupar o trono. A nova imperatriz, que não devia ser muito ciumenta, encomendou-lhe então o apoio da carreira de Adriano, tarefa que Lúcio Licínio cumpriu com entusiasmo. Alguns historiadores acreditam que essa devoção correspondia a algo mais do que uma amigável cumplicidade.

Durante os primeiros anos do reinado de Trajano, a imperatriz e Sura continuaram a proteger Adriano das invejosas maquinações de Serviano. O jovem bético ocupou postos importantes e, com freqüência, muito próximos do imperador, como quando o acompanhou nas vitoriosas campanhas da Dácia. No ano 100, Plotina arranjou para Adriano um casamento de conveniência com uma das netas de Trajano, Víbia Sabina, que tinha apenas treze anos. Adriano manteve o matrimônio em branco, dada a tenra idade da noiva e a sua escassa atracção pelo sexo oposto. E o certo é que nunca chegou a ter filhos dela e, pelo que se supõe, nem sequer tentou. A sua carreira política continuou como tribuno do povo, em 105, e pretor, no ano seguinte. Finalmente, em 108, o seu protector, Lúcio Sura, concedeu-lhe o consulado que tinha ocupado por três vezes consecutivas. Pouco depois, para desolação do ascendente cônsul, Sura morre inesperadamente.

O vazio deixado pela morte do hábil conselheiro provocou a brusca queda de Plotina e de Adriano e a ascensão de uma elite cortesã encabeçada por Júlio Serviano. Pouco se sabe do ostracismo a que foi votado ao afilhado do imperador durante cerca de dez anos. Algumas fontes garantem que, durante esse tempo, foi procônsul em Atenas, o que lhe permitiu aprofundar o seu amor pelo helenismo e estudar a arte e a cultura da Grécia antiga. Entretanto, Trajano empreendia as suas grandes campanhas na frente oriental, conquistando a Partia, a Mesopotâmia, a Síria e a Armênia. Nesse intervalo de tempo, a persistente Plotina recuperou o favor do imperador e, em 117, conseguiu que Adriano fosse designado comandante do exército que ocupava o estratégico enclave da Síria.

Trajano morre de apoplexia durante a sua viagem de regresso a Roma e as legiões proclamaram Adriano imperador. O recém-proclamado imperador iniciou um regresso lento, mas calculado, à capital do império, enquanto Plotina limpava a corte de adversários e os seus partidários obtinham a confirmação do Senado, graças ao antigo tutor Acílio Attiano, agora chefe dos pretorianos, que eliminou os quatro senadores mais recalcitrantes. Adriano chegou ao Palatino no meio de uma certa indiferença popular e não permaneceu muito tempo na cidade, nem nessa ocasião nem ao longo dos seus vinte e um anos de reinado. O seu antecessor deixou-lhe um enorme e caótico império, que abarcava quase todo o mundo conhecido (Roma era chamada Caput mundi), com fronteiras em permanente conflito e constantes levantamentos nas províncias mais rebeldes. O novo imperador dedicou-se a percorrer palmo a palmo o seu inabarcável território, alojando-se nos acampamentos militares e comendo e dormindo com os seus legionários. Mas só entrava em guerra se fosse imprescindível; com uma legislação tolerante e generosa e a construção de caminhos, aquedutos, templos e anfiteatros, integrou e romanizou povos orgulhosos e díspares. Foi então que todo o Império tomou o nome de Roma, que até então apenas designava a metrópole do Tibre.

Serviano continuou as suas intrigas no Senado, acusando o imperador de descurar Roma para agradar aos bárbaros, de ter reduzido as fronteiras de Augusto para não enfrentar os Germanos e de praticar o “vício grego” pelo seu decadente helenismo. Apesar de tudo, o certo é que Adriano foi um dos governantes mais sensatos, cultos e progressistas do Império Romano.

O seu reinado caracterizou-se pela consolidação das fronteiras, pela organização das províncias e pelo incentivo dos serviços e das obras públicas, pela promoção das artes e da agricultura e pela compilação do Edito perpetuo, primeiro esboço do que seria o célebre direito romano. Entre as suas obras mais notáveis contam-se o mausoléu (núcleo do actual castelo de Sant’Angelo, em frente ao Vaticano), o templo de Vênus e o de Júpiter, no local que o templo de Salomão ocupara, em Jerusalém, que reconstruiu com o nome de Aelia Capitolina. O seu enorme gosto pela cultura clássica reflectiu-se no seu empreendimento pela educação, pelas artes, pela filosofia e pela literatura. Apesar dos comentários dos seus adversários, nunca escondeu o seu escasso interesse pelas mulheres, o que o prejudicou politicamente, nem as suas preferências homossexuais, que o levaram a uma trágica experiência nos últimos anos da sua vida.

No ano 123, Adriano tinha quarenta e sete anos e tinha deixado crescer uma barba espessa e curta, que mudou a moda do rosto barbeado estabelecida por Júlio César entre os Romanos.

Nesse ano realizava uma viagem pelas províncias da Ásia Menor e, na cidade de Claudinópolis, conheceu um belo jovem grego chamado Antínoo. O imperador apaixonou-se perdidamente por aquele jovem que, nessa altura, teria entre doze e treze anos. Pouco se sabe da origem da família de Antínoo, excepto que tinha nascido na Bitínia (que, ao que parece, produzia os mais belos jovens da Antiguidade) e que desempenhava as funções de pajem na corte de Nicomedia. As crônicas também registram que, em 125, o imperador o levou consigo na sua viagem de regresso a Roma.


Busto de Antínoo, Artista desconhecido. 
Foto: Marsyas

Adriano permaneceu em Roma durante os três anos seguintes, estada pouco usual, talvez provocada pelo ingresso do seu efebo no paedagogium ou escola imperial. A sua única saída da cidade foi uma visita às Ilhas Britânicas, onde, em 127, erigiu uma muralha de 117 quilómetros, de costa a costa, para conter os aguerridos Caledônios da Escócia. Dada a pouca idade de Antínoo, é provável que a relação sexual entre ambos se tenha concretizado no ano 128, quando o jovem atingiu os dezassete anos e o imperador o levou consigo numa longa viagem pela Grécia, Ásia Menor e Norte da África. Diz-se que, ao chegar ao Egipto, no ano 130, Adriano visitou uma adivinha que lhe vaticinou a morte. Como homem racional e letrado que era, desdenhou do mau augúrio; porém, Antínoo ficou deprimido e inquieto, angustiado pela nefasta profecia.

Na época, existia no mundo romano a crença de que o cumprimento de uma profecia de morte só podia ser evitada se outra pessoa, por amor à vítima, se imolasse em seu lugar. E foi isso precisamente o que decidiu fazer o efebo enamorado: oferecer-se aos deuses para salvar o seu amado.

Adriano tinha-o brindado com o seu afecto e protecção, tinha-o educado e requintado e tinha-o ensinado a desfrutar com plenitude dos prazeres sexuais. Que mais poderia oferecer-lhe, senão a própria vida? Uma noite, pegou num dos barcos do séquito imperial e deixou-se arrastar pela corrente entre as trevas do Nilo. Não voltaria vivo à suas margens.

Alguns autores recusam esta versão romântica da morte de Antínoo. Há quem afirme que foi violado e assassinado por um bando de piratas fluviais, outros supõem que a sua inexperiência náutica levou a que a barca se virasse e que foi engolido pelas águas. Mas a verdade é que o suicídio por amor é o único motivo que oferece certos indícios colaterais, como o desânimo do jovem nos dias anteriores ou o sentimento de culpa de Adriano, que o levou a divinizar Antínoo, fundando uma cidade em sua honra e homenageando-o em templos, monumentos e moedas com a sua efígie e o seu nome. Dois séculos mais tarde, Atanásio, patriarca de Alexandria, condenaria essas sumptuosas honras, demonstrando mais uma vez a intolerância eclesiástica:

“Resoluções e actos que efectivamente tornaram público e testemunharam perante o mundo até que ponto a paixão antinatural do imperador sobrevivia ao seu amado; e em que medida o seu amor era devoto à sua memória, exaltando o seu próprio crime e condenação e deixando à Humanidade um enganoso e notório exemplo da verdadeira origem e linhagem de toda a idolatria.” (Santo Atanásio, 295-373).

É possível que esse desolado arrependimento fosse a causa dos ataques de loucura e de fúria que turvaram a mente do imperador nos últimos anos da sua vida. Animado por inesperados desejos amargos e despóticos, tomou decisões arbitrárias e injustas, que começaram a gerar intrigas e conspirações. Aquele que tinha amado cada pedaço do seu Império cometia agora atropelos despropositados nas províncias, como a repressão violenta e desnecessária da revolta judaica de 134, destruindo cerca de mil aldeias e povoações, provocando um total de 580.000 mortos. As suas legiões entraram em Jerusalém para edificar um santuário a Apolo no lugar do templo de Salomão e para refundar a cidade com um nome romano. Receoso de uma conjura, em 136 mandou assassinar o seu velho adversário Júlio Serviano, bem como o seu neto Pedânio Fusco, possível candidato da imaginária conspiração. Naquela triste etapa final, os excessos e abusos de Adriano recordaram a Roma os piores momentos do reinado de Nero. É provável que o tivessem destituído, se o extraviado imperador não tivesse morrido na em Baía (Nápoles), no dia 10 de Julho de 138, depois de uma lenta e insuportável agonia. Tinha 62 anos e os Romanos não choraram a sua morte, no mausoléu de Sant’Angelo.

“Perdeu Antínoo enquanto navegava no Nilo e chorou por ele como uma mulher.” (Historia Augusta)

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 64-71.

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