"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 4 de novembro de 2014

O tenentismo: o contexto histórico

“... moças brasileiras... voltai o rosto ao Exército que passa! Estes não merecem vossos olhares...”
 (Tenente Siqueira Campos)

 Revolta dos 18 do Forte de Copacabana: tenentes vão de encontro às forças legalistas, na Avenida Atlântica, Rio de Janeiro, 6/7/1922 Fotógrafo desconhecido 

A hegemonia da oligarquia paulista (habilmente repartida com a oligarquia mineira, a “carneirada”, cuja força advinha de sua participação majoritária no Congresso) atravessara incólume os trinta primeiros anos da República. A explicação estava no eficiente funcionamento de um sistema de dominação alicerçado em pelo menos três elementos: o mandonismo dos coronéis, a política dos governadores e o emprego da força do Estado nas inúmeras vezes em que isso pareceu necessário.

Crises resultantes das disputas sucessórias, como a de 1910, em que São Paulo e Minas apresentaram candidatos opostos, eram logo contornadas pelas próprias oligarquias estaduais. Elas evitavam sempre o enfrentamento armado, no plano nacional, pois isso poderia enfraquecer o sistema de dominação.

A liderança paulista era reconhecida pelas oligarquias estaduais dominantes, pelos industriais (em particular o grupo de São Paulo) e ainda por um significativo setor da sociedade brasileira, as camadas médias urbanas mais favorecidas, cujos membros ocupavam altos cargos na administração pública. Estas camadas se originaram, em parte, de aristocráticas famílias imperiais decadentes, destacando-se muitos bacharéis dispostos a colaborar na direção do país, em troca do que podiam manter seu antigo status social. Acreditando nos mesmos valores liberais-conservadores das classes proprietárias, contribuíam, com o seu trabalho intelectual, para a consolidação do sistema oligárquico.

As parcelas empobrecidas das camadas médias – funcionários públicos, empregados de escritório, comerciários, bancários etc. – assim como as classes trabalhadoras do campo e da cidade estavam inteiramente excluídas do sistema de poder. Os indivíduos mestiços, assim como os negros, continuavam sofrendo o peso da discriminação racial e da desqualificação profissional, mal se integrando no mercado capitalista de trabalho. Por muitos anos ainda, negros e mestiços continuariam engrossando a grande massa de subempregados (ambulantes, biscateiros e empregados domésticos) e de desempregados.

A única oposição tida como legítima pelos que controlavam o sistema e por isso tolerada, era a das oligarquias dissidentes. Elas brigavam apenas pelo poder, jamais tendo a intenção de destruir os fundamentos materiais (a grande propriedade, o poder oligárquico etc.) e ideológicos (o pensamento liberal-conservador) do regime.

O regime era oligárquico, antidemocrático, afastado da “obra apenas doutrinariamente bela”, segundo Oliveira Viana, a Constituição de 1891. O desabafo de um republicano histórico – “Não é esta a República dos meus sonhos” – exprimia o sentimento de todas as forças sociais de oposição, muito embora cada uma delas imaginasse alternativas bem diferentes de república.

No início dos anos 20, a insatisfação dominava também boa parte dos oficiais jovens do Exército, instituição que, desde o governo Floriano, mantivera-se subordinada aos interesses oligárquicos.

No início do século, esses oficiais – originários principalmente das camadas médias – constituíam uma corrente formada na recém-criada Escola do Realengo, situada na Vila Militar do Rio de Janeiro, e manifestavam um duplo descontentamento. Formados na concepção de que a missão do Exército era sobretudo “servir à nação” e desenvolver trabalhos meramente profissionais (doutrina diferente da positivista, que predominava na antiga Escola da Praia vermelha e no Sul, estimulando a politização dos militares), muitos deles, na maioria tenentes e capitães, insurgiram-se contra a cúpula do Exército que acusavam de “servilismo contumaz” e contra as próprias oligarquias dominantes. Em contato maior com a tropa, que mais sofria os efeitos da crônica inflação, sensibilizaram-se pelos protestos das camadas médias contra o regime oligárquico. Desagradava-lhes, também, a maior atenção dada às forças públicas estaduais – melhor equipadas que o Exército e sob o controle dos grupos dominantes -, e, acima de tudo, o fato de terem de se submeter ao papel de preservar um regime que consideravam corrupto.

Em 1918, Rodrigues Alves foi eleito presidente pela segunda vez. Morrendo logo depois, as oligarquias paulista e mineira elegeram o paraibano Epitácio Pessoa. O seu governo (1919-1922), excessivamente conservador e tendo de enfrentar os efeitos da crise internacional de 1920-21, acabou sendo combatido por diversos setores das classes dominantes, contrariada por sua negação de continuar subsidiando o café e de favorecer a indústria.

A disputa pela sucessão de Epitácio Pessoa, em meio a forte crise política, marcaria o início de uma série de novas crises que abalariam o regime. As duas oligarquias dominantes indicariam o mineiro Artur Bernardes, pois era a “vez” de Minas. Pretendendo chegar ao poder nacional, o Partido Republicano Rio-Grandense, sob o comando de Borges de Medeiros, opôs-se à candidatura de Bernardes e, com o apoio de militares hermistas e a participação das oligarquias dominantes da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro, formou a Reação Republicana, lançando para presidente o fluminenses Nilo Peçanha.

A oposição preparou uma “campanha à americana”, com muitos comícios, faixas e desfiles, além de um programa liberal e moralizante: contra a falsificação eleitoral, suborno e as máquinas públicas. Era, porém, um liberalismo de fachada, destinado a conquistar o apoio das camadas urbanas, cujo peso eleitoral aumentava. Como esperar, afinal, que as reformas apregoadas fossem realizadas por dissidentes “liberais”, que diziam condenar procedimentos por eles mesmos praticados e dos quais dependiam para vencer?

As forças ditas “liberais” e “regeneradoras” da “Reação Republicana” ainda tentaram impedir a posse de Artur Bernardes, o candidato vitorioso, publicando no Correio da Manhã, jornal de oposição do Rio, uma carta falsa a ele atribuída e contendo insultos ao Exército. A carta provocou a sublevação de várias unidades militares, porém sem maiores consequências.

ALENCAR, Francisco [et alli]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 291-293.

NOTAS:
1) O texto "O tenentismo: o contexto histórico" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
2) Continue lendo no próximo post - "O tenentismo: as rebeliões" - a ser publicado dia 7 de novembro.

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