"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O legado da África Negra

Faraós núbios

[...] Convém lembrar, aqui, que se aprofundam os estudos no sentido de estabelecerem-se os vínculos existentes entre a terra dos faraós e a África Negra. Procura-se aproximar, mediante técnicas lingüísticas apropriadas, o antigo egípcio e as línguas atuais da África Negra. “Também o historiador deverá estar preparado para uma radical mudança de perspectiva quando for desvendada uma macroestrutura cultural comum entre o Egito faraônico e o resto da África Negra” (OBENGA).

Templo egípcio, Karl Richard Lepsius

Na Europa Medieval pode ser apontado como legado da África Negra a contribuição do ouro africano para a economia medieval. Davidson anota: “À medida que o tempo foi passando, os povos da Europa, erguendo-se da sua pobreza nos inícios da Idade Média, começaram a considerar a África em virtude do ouro de que precisavam. Depois de 1300 d.C., aproximadamente, as primeiras moedas de ouro feitas na Inglaterra desde a época romana foram cunhadas com metal trazido da África Ocidental através do Saara. Para obterem esse ouro os ingleses, e outros com eles, exportavam as suas próprias mercadorias manufaturadas. Tinham poucas coisas para oferecer, mas faziam o melhor que podiam para competirem com os mercadores norte-africanos, asiáticos ou sul-europeus. Séculos mais tarde, em 1896, os britânicos invasores travaram uma batalha contra o Império Achanti, então senhor da maior parte do Ghana moderno. Descobriram ali uma bela vasilha de prata feita na Inglaterra antes de 1400 d.C. e estampada com o emblema do rei inglês Ricardo II, que reinou de 1377 a 1399. Foi sem dúvida um dos objetos que os ingleses tinham vendido, através de comerciantes árabes e outros “intermediários”, com o objetivo de comprarem ouro na África Ocidental”.

No campo religioso um dos aspectos mais interessantes da influência da África Negra é a [...] africanização do Islam.

Hampaté Ba observa: “De fato, por onde se espalhou, o Islam não adaptou a tradição africana a seu modo de pensar, mas, pelo contrário, adaptou-se à tradição africana quando – como normalmente ocorria – esta não violava seus princípios fundamentais. A simbiose assim originada foi tão grande que por vezes torna-se difícil distinguir o que pertence a uma ou a outra tradição”.

Um aspecto interessante do legado da África Negra a outro continente e que se situa num plano de estudos muito especializados é a contribuição do continente africano no campo de cereais importantes, como, por exemplo, o sorgo e o arroz. Claro está que a África também recebeu plantas de outras regiões do globo [...].

A África pré-histórica deixou um notável legado. Não se trata somente dos preciosos fósseis que têm levado os antropólogos a diferentes teorias sobre o continente africano considerado como o berço da humanidade. Trata-se das relações entre os tipos “raciais” (o termo é controvertido) modernos do continente e o modelo antigo dos grandes grupos antropológicos. Na medida em que os perfis antropológicos apresentam uma constância notável (até mesma milenária), “não é errôneo extrapolar para a pré-história algumas das características do quadro étnico atual” (OLDEROGGE).

A África pré-histórica deve ainda ser recordada pelo importante legado no campo artístico. Com efeito, ao estudar a arte pré-histórica africana, Ki-Zerbo acentua a íntima relação que existe entre as características dessa arte (popular, quotidiana, senso de humor que é a ironia alegre ou amarga da vida, esotérica, vibrante como um fervor místico) e a condição do homem africano moderno, “tão espontâneo e quase trivial no dia a dia, tão sério e místico quando tomado pelo ritmo de uma dança religiosa. Em suma, a arte pré-histórica africana não está morta. Ela vive, ainda que apenas nos topônimos que perduram. Um vale afluente do Uede Djerat, denominado Tin Tehed, ou seja, “o lugar da jumenta”, é efetivamente marcado por uma bela gravura de asno. Issoukai-n-Afella tem a fama de ser assombrado por espíritos (djenoun) talvez porque, diante de um monte de seixos constituídos por arremessos de pedras votivas, exista uma figura zoomorfa assustadora, que reúne os atributos da raposa aos da coruja, sem falar num sexo de tamanho descomunal”.

[...] Focalizar o passado humano da África, especialmente da África Negra, significa ampliar consideravelmente os horizontes da história abrindo à fascinante disciplina de Clio uma perspectiva verdadeiramente universal. Esta ampliação de horizontes, enfatize-se, não se dá somente com relação à própria matéria, objeto de estudo da história. Abrande a própria metodologia da história como ciência. Obenga anota: “A prática da história da África torna-se um permanente diálogo interdisciplinar. Novos horizontes se esboçam graças a um esforço teórico inédito. A noção de “fontes cruzadas” exuma, por assim dizer, do subsolo da metodologia geral, uma nova maneira de escrever a história. A elaboração e a articulação da história da África podem, consequentemente, desempenhar um papel exemplar e pioneiro na associação de outras disciplinas à investigação histórica”.

Lembremos aqui a importância fundamental das fontes orais na pesquisa do passado da África. Pode-se mesmo afirmar que os historiadores da África realizaram, na utilização dessas fontes, um verdadeiro trabalho de pioneirismo.

Os estudiosos das estruturas político-sociais muito aprenderam do passado da África Negra: “Poucos se prontificavam a reconhecer, por exemplo, que uma das grandes realizações da África fora provavelmente a sociedade sem Estado, fundada mais sobre a cooperação do que sobre a opressão, e que o Estado africano se havia organizado de maneira a realmente apresentar autonomias locais” (CURTIN).

GIORDANI, Mário Curtis. História da África: anterior aos descobrimentos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 251-254. (Idade Moderna I)

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