"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 10 de julho de 2014

O Império Romano sob Augusto (27 a.C. - 14 d.C.)

César quisera integrar Roma na tradição milenar das monarquias helenísticas. Augusto adotou uma política essencialmente romana.

Ficando como único titular dos poderes triunvirais, declarou renunciar a eles (27 a.C.) e restituir à república as suas antigas instituições. Dizimado pelas proscrições, o Senado foi reconstituído por ele. Os senadores não foram mais eleitos pelo povo, mas nomeados pelo imperador. Devolveram os poderes triunvirais a Augusto, primeiro por dez anos, depois até a sua morte (14 d.C.). Os comícios, que formavam outrora a base do poder, perderam toda a autoridade real. Limitaram-se a ratificar a outorga dos poderes do imperador. Os magistrados nomeados pelo Senado, por proposta do imperador, escaparam ao controle do povo, que outrora os elegia. Juridicamente, subsistia a república. Na realidade, desaparecera. O recurso às suas instituições não fazia mais do que legalizar a ditadura militar.

Imperador Augusto. Artista desconhecido.
Foto: Jastrow

Augusto dividiu a sociedade em classes hierarquizadas, dotadas de status jurídicos diferentes. Os senadores seriam julgados pelos seus pares. Entre eles se recrutavam os governadores de províncias e os generais. Somente os cavaleiros podiam ser oficiais superiores. Os simples cidadãos careciam de quaisquer direitos políticos. Podiam ser oficiais subalternos se fossem italianos; simples soldados, se o não fossem. Os cidadãos recenseados eram 5 milhões. Os outros habitantes do império dividiam-se em homens livres, peregrinos e escravos. Entre os peregrinos, os ocidentais e os africanos tiveram acesso fácil à cidadania romana e ao Senado. Os orientais, menos. Os egípcios relegaram-se, com os alforriados libertados, à classe dos que haviam capitulado sem condições e foram marcados pela incapacidade de chegar algum dia ao direito de cidade. Convertido em apanágio imperial, o Egito se tornou, para o imperador, uma terra de exploração.


O encontro de Antônio e Cleópatra, 41 a.C., Sir Lawrence Alma-Tadema

Os escravos, privados de todos os direitos, foram submetidos a sanções penais implacáveis, tiradas do mais arcaico direito romano. A antiga concepção grega do escravo como “instrumento animado” impôs-se a todo o mundo mediterrâneo.

Às teorias democráticas que concebem os homens como iguais entre si, opôs Augusto a superioridade natural dos romanos, raça dominante.


Catulo em Lésbia, Sir Lawrence Alma-Tadema

Augusto, aliás, não fecha Roma à influência intelectual do mundo helenístico. Estimula as letras. Com Horácio, Virgílio, Cornélio Nepos, Catulo, Tito-Lívio, Tibulo e Propércio, Roma exerceu sobre a elite intelectual helenizada irresistível atração. Dessa maneira, afirmou-se, não como conquistadora, mas como capital do mundo helenístico.


Uma coleção de pinturas na época de Augusto, Sir Lawrence Alma-Tadema

Como César, Augusto lutou contra o domínio do grande capitalismo sobre o Estado. Adotando a política das antigas monarquias orientais, que haviam sempre reservado para o Estado a exploração das minas, instaurou-lhes o monopólio. Mas a sua intervenção na organização econômica do império não foi mais adiante. Ele não empreendeu uma política de economia dirigida. A oligarquia capitalista não chegou a formar um Estado dentro do Estado. Não encontrando emprego em Roma, que não era um centro industrial, nem local de tráfico, os capitais refluíram para os centros econômicos do império. Investiram-se em províncias ocidentais, na forma de propriedades imobiliárias; nas províncias orientais, foram absorvidos pelas atividades comerciais, que conheciam um novo impulso em conseqüência do reinício do comércio com as Índias, pela estrada marítima do mar Vermelho.


Loja de vinhos, Sir Lawrence Alma-Tadema

Augusto esforçou-se por fomentar a expansão comercial. O canal de Suez, assoreado, foi restabelecido. Enviou-se uma frota romana ao mar Vermelho para tentar retomar aos árabes de Adem o domínio da navegação, mas debalde. Nem as armas, nem a guerra das tarifas aduaneiras, nem a aliança da Abissínia, que teve, então, rápida expansão marítima, proporcionaram a Roma tanto quanto lhe proporcionaria, sob os sucessores de Augusto, o simples restabelecimento do comércio livre.

O império era formado de duas partes distintas: um bloco continental (Itália, Gália, Espanha e África latina) de tendência terrestre e aristocrática, e um vasto conjunto marítimo, formado pelos antigos Estados helenísticos dedicados ao comércio, de tendência democrática. O Mediterrâneo, do qual Augusto acabou de fazer um lago romano, unia tudo num vasto conjunto.

Politicamente, esse conjunto se achava repartido entre as províncias subestimadas às instituições da República romana e aquelas cuja administração depende diretamente do imperador. Foi a administração destas últimas que deu origem às instituições imperiais. Nela preponderou a influência das concepções orientais, visto que, para governar os povos diversos que não viviam sob as instituições romanas, o imperador recorreu aos princípios do direito helenístico. Nomeou governadores e funcionários remunerados, baseou o imposto sobre a capitação e as rendas imobiliárias, instaurou o cadastro e mandou elaborar o orçamento anual das receitas e das despesas. Essas instituições sábias substituíram, nas antigas províncias, o sistema arcaico da república. Na própria Itália, o imperador instaurou órgãos de governo tirados do direito público helenístico: criou prefeitos e comissões executivas (obras públicas das estradas, dos aquedutos etc.).

O direito privado sofreu igualmente a influência oriental; transformou-se a noção da propriedade: o usufruto e a hipoteca foram tomados ao direito grego, e o direito contratual tornou-se mais flexível.

Se o imperador não era mais que o primeiro dos cidadãos (princeps) nas antigas províncias romanas, nos antigos Estados helenísticos era soberano, considerado, ao mesmo tempo, senhor e protetor. Declarado “divino”, como César, Augusto foi objeto, nas províncias helenísticas, de um culto imperial, cuja organização deu lugar à eleição de delegados das cidades. Esses delegados, reunindo-se anualmente para celebrar o culto do imperador, logo votaram pedidos que lhe foram transmitidos.

Obrigado a dar instituições ao império, o imperador deixou que este lhe impusesse o culto imperial que legitimara o poder em todas as monarquias antigas, e as assembleias provinciais, que foram os primeiros órgãos políticos, lhe permitiram colocar-se em contato com a opinião pública.

O Senado, ao contrário, prisioneiro dos seus privilégios, obstinou-se numa política nacional e reacionária.

Na luta que o oporia ao Senado, o imperador, arrastado pela unidade do império, faz-se-ia campeão da emancipação dos peregrinos, e surgiria diante do povo, erguendo-se contra os privilégios da aristocracia romana, como protetor da liberdade.


PIRENNE, Jacques-Henri. Panorama da História Universal. Difel/EDUSP: São Paulo, 1973. p. 109-111.

NOTA: O texto "O Império Romano sob Augusto (27 a.C. - 14 d.C.)" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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