"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Características da civilização mongólica

Nenhuma civilização, talvez, submeteu-se, tanto como a dos mongóis aos imperativos da geografia e do clima. Seu habitat estépico sofre variações extremas de temperatura: uma breve primavera, um vento tórrido e dessecante, um inverno rigoroso e glacial; ventos furiosos varrem estas extensões onde não encontram qualquer obstáculo. Este clima brutal forja uma saúde inquebrantável e veda a sobrevivência dos fracos. Assim, a raça mongólica, quer a da estepe, quer a dos contrafortes florestais, é extremamente robusta. A rude existência dos caçadores, à horda da taiga, ou a dos pastores, em pleno coração das estepes, exige uma adaptação do físico: torso maciço e tórax desenvolvido sobre as pernas arqueadas pelo constante uso do cavalo; visão penetrante e grande agilidade. Todos são grandes devoradores de carne e consumidores de laticínios, e embebedam-se de bom grado. Joviais e bravos, mas capazes de inusitada crueldade, são amiúde inteligentes, astuciosos, suscetíveis mesmo de policiarem-se.


Arqueiro mongol, artista desconhecido. Miniatura chinesa da dinastia Ming, séculos XV-XVI.

A maioria das tribos são formadas de pastores. Ainda menos civilizados, e menosprezando também os pastores, os caçadores das florestas não possuem gado ou cavalos: vivem exclusivamente da caça e de alguns ofícios artesanais - carpinteiros, ferreiros. No inverno, calçam raquetas (tchana) de tábuas, apoiando-se em altos bastões a fim de caminhar os deslizar sobre a neve; outros, dotados de patins de osso polido, lançam-se sobre a neve endurecida ou sobre o gelo e capturam os animais na corrida. Suas cabanas de ramagem, recobertas de casca de bétula, são transportáveis, inteiramente montadas, em carros.

As tribos pastoris, conforme as variações do clima estépico e o estado das pastagens, são obrigados a periódicas transumâncias e à vida nômade. No inverno, os rebanhos descem para as estepes, onde faz menos frio, e aí permanecem durante a primavera, estação em que o pasto é melhor; no verão, tornam a subir os flancos das montanhas, onde os homens encontram um pouco de frescor e entram em contato com os habitantes das florestas. Em vista destes longos percursos, tudo, no acampamento, é concebido a fim de permitir fácil transporte. Os carros dispostos em círculo formam uma espécie de cercado. Permanecendo o mais das vezes totalmente armadas sobre os carros, as casas são de dois tipos: umas (ger) - impropriamente denominadas iurtas - feitas de feltro negro, em forma redonda, acham-se montadas sobre uma estrutura móvel de perchas e ripas, em torno de uma percha central, considerada sagrada; um pequeno tubo, fixo ao feltro, serve ao escapamento da fumaça e à ventilação. As outras (maican), largas e baixas, apresentam-se cobertas de lã, enquanto a tenda do chefe se distingue por sua cor branca ou "toda dourada".


Cavalaria mongol, artista desconhecido. Ilustração de manuscrito, século XV.

Os carros, de madeira, munidos de dois varais, transportam, além das provisões, um instrumental rudimentar de celhas de madeira, panelas, baldes de couro, odres e foles para o fogo. Cobrem-nos um berço estanque em feltro negro e, puxados por bois, rangem e solavancam ao longo das trilhas. Neles amontoam-se as famílias e os animais novos, demasiado débeis para que possam caminhar muito tempo. Atrás vêm os rebanhos, enquadrados por homens montados nos pequenos cavalos desgrenhados, munidos de uma sela de couro e tão vivos quanto os seus cavaleiros. Nos rebanhos, importunados pelas varejeiras, misturam-se cavalos de remonta e éguas, touros, bois e vacas, bodes domésticos, carneiros e ovelhas, e às vezes até camelos.

Como todos os nômades, os mongóis passam sem transição da fome à comezaina. Cada festa, cada acontecimento jubiloso é ocasião para um banquete. Nutrem-se de carne de cavalo e de carneiro, cozida ou assada, de leite coalhado (tarac), de alho e cebola, e de uma espécie de manteiga batida nas celhas com um pau parcialmente guarnecido de couro; em caso de escassez, cingem-se às sorvas, às bagas silvestres, às raízes comestíveis. Embriagam-se com leite de égua fermentado (cumiz), do qual sempre levam uma provisão, caso se distanciem por alguns dias. Para alimentar as fogueiras de acampamento, acesas com fuzil e mantidas com foles, usam esterco seco, espinheiras e raízes. À aproximação do inverno, abatem carneiros e constituem reservas de carne congelada; do mesmo modo, conservam o leite seco e reduzido a pó. Só as tribos que, como os markites, erram nas rotas das caravanas, conseguem farinha.


Um príncipe mongol estudando o Corão, ilustração de Rashid-ad-Din's Gami' at-tawarih. Tabriz. Século XIV.

Guerreiros, caçadores e pescadores, bem como pastores, manejam com destreza o arco e as flechas contidos num só envoltório de couro, análogo aos goritus dos citas, o sabre curvo, a lança de ferro. Desde a infância, fabricam arcos e flechas com madeira de pessegueiro ou zimbro e armam-se de pontas de osso ou madeira de cipreste. As mais temíveis são guarnecidas de uma ponta de ferro, que arranjam com os ferreiros das tribos das florestas e que untam às vezes de veneno. A caça é feita por meio de batidas em que se encurrala a presa antes de matá-la, ou de açores, gerifaltes e falcões, para caça de aves, ou de laço, para os cavalos selvagens, os hemionos (culan), os carneiros e os argalis, ou ainda mediante a perseguição a cavalo e com o arco, para os cervos, alces, antílopes e gamos. Sabem também desenterrar as marmotas (gerbos) com um instrumento de ferro, prender em armadilha os animais de pêlo, desencovar os ursos, pescar com rede os peixes dos lagos e dos rios; são auxiliados na caça como na guerra por cães famosos pela sua ferocidade. Acima do acampamento voam nuvens de pequenas gralhas; e em volta, durante a noite, rondam os lobos, os chacais e até os tigres.

Instalado o acampamento para o pouso noturno, a vigia organiza-se em torno de fogos de bivaque; os que velam jogam ganizes ou escutam os relatos que se transmitem oralmente ao longo das estepes. Quando da estação do estabelecimento, o acampamento transforma-se em "cidade"; constituem-no uma multidão de círculos de carros; as tendas são erguidas ao sol e orientadas para o sul; as do chefe e de suas mulheres, à parte das outras, compõem um palácio rudimentar ao qual são vinculados, além de numerosos servidores e escravos, um rebanho e pastagens próprias. Durante o repouso, os mongóis calandram o feltro, fabricam correias e cordas, selas e arreios, carcases e armas, vigamentos de madeira para as tendas e os carros, preparam enfim as peles e peliças.


Gengis Cã recebe embaixadores chineses, Jami' al-tawarikh, Rashid al-Din. Século XV

"O povo mongol cheira mal com suas roupas enegrecidas", confessa a História Secreta dos luan: é porque se cobre de peles e peliças, forrando os mais ricos, os seus casacos de inverno com zibelina, arminho, petit-gris ou raposa: e só depois da conquista da China vestem, na estação quente, a seda e o brocado. Os jovens de ambos os sexos conservam os cabelos longos, tapando os ouvidos. Tonsurados entre as duas orelhas, a parte frontal da cabeça rapada numa largura de três dedos, com uma franja de ambos os lados, os homens trançam seus cabelos e os prendem atrás da orelha, conservando sempre um topete que desce até os sobrolhos. As mulheres casadas embiocam-se com uma coifa de casca de árvore, da altura de dois pés chineses, que recobrem às vezes de um pano de lã ou, como sinal de opulência, de seda. O conjunto termina por uma longa cauda, que K'ieu ang-tch'uen (1221), compara a um ganso ou pato.

Sempre em estado de alerta para se defenderem dos animais selvagens ou das tribos vizinhas, estes audaciosos e ardilosos guerreiros espreitam a aproximação do vizinho que descobrem por uma nuvem de poeira no horizonte ou colando o ouvido ao solo. Agrupados em redor de seu estandarte de guerra (tuc), ao qual rendem culto e que os acompanha em todos os combates, são admiráveis cavaleiros, formando um todo com suas montarias, tão robustas como eles - contentam-se com a erva da estepe - , montarias que sabem poupar, mas às quais, no chicote, podem exigir o máximo esforço: o cavalo é o companheiro do homem, e os relatos mongólicos conferem-lhe uma verdadeira personalidade. Cobertos, em pé de guerra, de uma armadura de couro cozido, caindo como raio sobre os seus inimigos, não poupando a vida humana, os mongóis são também temíveis arqueiros, "os melhores que se conhece no mundo", nas palavras de Marco Polo. Suas tropas, perdidas na imensidão do deserto, são capazes de resistência invulgar, satisfazendo-se com leite de égua que bebem dos odres suspensos na sela, com bagos silvestres e caça abatida ao acaso no caminho, dormindo e velando a cavalo, cobrindo as rédeas soltas enormes distâncias. Se faltam os víveres, podem subsistir durante 10 dias, sugando o sangue de seus cavalos, nos quais abrem uma veia, tapada em seguida com estopa, ou diluindo e remexendo o pó de leite seco em um pouco de água.

Em caso de ataque de surpresa, entrincheiram-se atrás de seus carros dissimulados por moitas, ou fogem disparando sempre suas flechas, pois sabem voltar-se para a garupa de seus cavalos lançados a galope: tática terrificante que os citas e os partos já empregavam. Utilizam de bom grado os serviços de trânsfugas e espiões e vêem na guerra apenas uma oportunidade de matanças, raptos e rapinas. Os cativos sofrem bárbaros suplícios: só os que eles apreciam têm direito à morte por asfixia, sem efusão de sangue, pois acreditam que a alma reside no sangue. Salteadores, rapinantes e bandidos, como todos os nômades, travam entre si inexplicáveis vendetas, exterminando sem dó toda uma família, apoderando-se do gado, saqueando o material e queimando mesmo para sempre as pastagens dos clãs vizinhos. Como a presa da caça, o espólio de guerra é repartido entre os chefes, os oficiais e os guerreiros.

PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia Mongólica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. (História geral das civilizações, 7)

NOTA: O texto "Características da civilização mongólica" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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