"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 26 de julho de 2014

A vida material e social na Grécia Antiga: as sociedades rurais

Politicamente dividida em múltiplas cidades, a vida econômica e social da Grécia oferece-nos aspectos muito variados. Dada a deficiência de estradas, a circulação processa-se sobretudo por via marítima, mas acontece que muitas cidades ficam distanciadas dos portos, aos quais, assim como às outras cidades do interior, se encontram ligadas apenas por maus caminhos. Pondo-se de lado alguns pontos privilegiados, os homens e as ideias não se misturam, não se trocam os produtos, a não ser em escala muito limitada. O único elemento de unidade [...] seria, portanto, a preponderância quase generalizada da vida rural. A imensa maioria da população da Grécia vive no campo e tira da terra seus recursos; o desenvolvimento e o embelezamento de certas cidades, bem como a intensidade de sua atividade marítima, não devem dar margem a ilusões.

[...]

Existem regiões de grandes propriedades. São aquelas onde a terra é mais fértil, ao menos para a cultura dos cereais, ou propícia às pastagens que tornam possível a criação de gado graúdo, principalmente cavalos, ou seja, no conjunto, as regiões de planície, percorridas por cursos d’água mais ou menos permanentes. Os privilegiados donos do solo são suficientemente ricos para que possam tentar experiências, aplicando novos métodos de cultura. Graças a eles, expandiu-se, no século IV a.C., o uso de adubos e prados preparados, determinando a diminuição do alqueire e a extensão da criação de gado. Xenofonte, em Econômica, fornece-nos o retrato ideal do amo cuidadoso, de espírito aberto às inovações, que zela inteligentemente por seus interesses e dirige com mão firme tanto a casa, por intermédio da mulher a quem prodigaliza bons conselhos, quanto às terras, cuja exploração acompanha de perto.

Esses proprietários não trabalham com suas mãos. Formam a elite social do campo e, mesmo, das cidades, pois, sendo nobres, é dos seus antepassados que recebem os domínios. A melhor parte de sua existência , depois de passada a juventude na cidade, transcorre na velha mansão da família, situada no centro de suas propriedades. Mantiveram o ideal da aristocracia arcaica. O gosto pelos exercícios físicos, pela caça, equitação e boa mesa não os impede de apreciar as poesias de Píndaro nem, até na rude Macedônia, as tragédias de Eurípedes. Sendo as principais figuras do local, interessam-se pela vida do aldeamento ou do pequeno distrito em que sua família é a mais eminente e cujos cultos são, aos olhos de todos, os seus cultos patrimoniais. [...] Os trabalhadores agrícolas que deles dependem são uma espécie de clientela necessariamente devotada. Mas os camponeses livres da vizinhança, embora frequentemente deles desligados no plano jurídico, também sofrem sua ascendência. [...]


Camponês usando um pilos (chapéu cônico) e segurando uma cesta. Estatueta de terracota de Myrina, século I a.C. 
Foto Marie-Lan Nguyen

Há mesmo, por vezes, mais do que a dependência econômica ou a dedicação fiel. Em parte alguma se pratica, em grande escala, a exploração da terra por meio de escravos agrupados em turmas sob a vigilância de um feitor: a utilização desse processo está reservada aos capitalistas romanos. Mas, num ou noutro ponto, existe a servidão, o cultivo da terra por homens que não podem abandoná-la. Embora. Na Tessália ou em Creta, por exemplo, haja servos que pertencem ao proprietário do solo, o caso mais bem conhecido é o dos servos do Estado, que são os ilotas espartanos.

Os ilotas só podem ser libertados pelo Estado, e este, fixando seu estatuto, ligou-os aos “lotes” de terra, os quais, em teoria, não foram entregues aos cidadãos senão a título de usufruto. Os ilotas fundam livremente suas famílias e cultivam à vontade a parte do domínio onde se instalaram. Devem ao cidadão titular da terra apenas uma prestação anual em gênero, cujo montante é fixado de uma vez para sempre, e conservam pela propriedade e livre disposição do excedente das colheitas.

Economicamente, sua sorte parece ao menos suportável: por volta do fim do século III a.C., 6.000 possuirão um pecúlio suficiente para comprar ao Estado sua alforria, passando uma soma equivalente, para a época, ao valor médio de um bom escravo. É verdade que outras obrigações pesam sobre eles: prestar serviços domésticos cuja natureza exata ignoramos ou fornecer escudeiro e mesmo infantes com armamento ligeiro que acompanham os cidadãos nas suas campanhas. Mas sua condição, segundo parece, agrava-se sobretudo devido às medidas policiais contra eles tomadas por Esparta. Uma dessas é a liberdade concedida aos jovens espartanos, no momento da “criptia”, de matar qualquer ilota encontrado na rua à noite; outra é a proibição de possuir armas. Talvez houvesse suspeitas principalmente contra os messênios, reduzidos à servidão desde o século VIII a.C. e, depois, comprometidos em inúmeras sublevações.

[...]

Mas as regiões de grande propriedade, em que a terra é trabalhada por operários agrícolas ou por servos, cobrem apenas uma pequena parte da Grécia. Outro regime agrário predomina nitidamente: o da pequena propriedade explorada por seu dono. Conhecemo-lo, sobretudo, na Ática; predomina igualmente em outras áreas e constitui, com toda a certeza, o ideal da grande maioria dos gregos. Era uma vida que iam procurar nas colônias disseminadas ao redor da bacia do Mediterrâneo os que se expatriaram, nos séculos VIII e VII a.C. [...].

Em Atenas, a restauração e a salvaguarda da pequena propriedade camponesa foram a grande obra do século VI a.C.. O século V é a sua idade de ouro. Não há estrangeiros no campo [...]. Mais da metade dos cidadãos é constituída por proprietários, embora, às vezes, de lotes ínfimos, dispersos e distanciados de seu domicílio real. [...] O camponês consegue, portanto, facilmente, completar seu próprio lote, arrendando parcelas vizinhas que, sem ele, ficariam incultas.


Lavrador. Detalhe que representa pessoas trabalhando no campo.Copa Ática. Artista desconhecido

Não obstante e apesar de seu trabalho ingente, ele não faz fortuna. Nas regiões montanhosas, vivem arduamente rudes lenhadores e carvoeiros ou pastores que conduzem seus rebanhos de cabras e ovelhas em busca de um pasto ralo. Raríssimas são as boas campinas. Mesmo em solo cultivável, a precocidade da seca e dos calores estivais, a falta de capitais e a rotina permitem apenas um fraco rendimento em cereais; as ferramentas rudimentares impossibilitam um trabalho profundo; a escassez de adubos, devida à raridade do gado e à imperfeição da técnica, obriga, como no tempo de Hesíodo, a deixar o solo em alqueive, um ano em cada dois, realizando-se três tipos de cultura (de primavera, verão e outono), a fim de conservar sua unidade. Na prática, o pequeno lavrador não pode vender cereais. O que lhe fornece um excedente de produção e, por conseguinte, certo dinheiro líquido são as árvores frutíferas, como a figueira, a vinha e a oliveira. Capitalizados nessas plantações, o trabalho e as privações de seus antepassados [...] fornecem a sua renda anual. [...] Dessa forma, passa por rudes sofrimentos, ajudado pela família, que as próprias condições de sua vida obrigam a limitar: poucos filhos, um ou dois escravos [...].


Coleta de azeitonas por jovens. Ânfora, ca. 520 a.C. Artimenes

[...] Em tempo de guerra, sem muito reclamar, uma vez que se trata de defender os seus, a sua casa, as suas árvores e as suas messes, veste o armamento de hoplita, que é também um legado paterno. Mas aspira naturalmente à paz, durante a qual leva uma existência simples e sóbria, comendo papas de sua cevada, as cebolas de sua horta, o mel de suas colméias, os figos e as azeitonas de seu pomar, enriquecendo o cardápio apenas nos dias de festa, em que, com alguns vizinhos amigos [...] são servidos um leitão e uma ânfora de vinho de suas videiras. Foram suas aspirações modestas, suas alegrias triviais e seus sofrimentos que Aristóteles cercou de uma poesia ainda fresca di orvalho matinal, sussurrante do vôo das abelhas.


AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 181-186. (História Geral das Civilizações, v. 2)

NOTA: O texto "A vida material e social na Grécia Antiga: as sociedades rurais" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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