"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 1 de março de 2014

Pindorama - Os donos da terra

"Antigamente não havia civilizados, mas apenas índios. Uma mulher indígena ficou grávida. Toda vez que ela ia tomar banho no ribeirão próximo da aldeia, seu filho, que ainda não havia nascido, saía de seu ventre e se transformava em animais, brincando à beira da água. Depois voltava outra vez ao ventre materno. A mãe não dizia nada a ninguém. Uma dia o menino nasceu. Era Aukê. Ainda recém-nascido, transformava-se em rapaz, em homem adulto, em velho. Os habitantes da aldeia temiam os poderes sobrenaturais de Aukê e, de acordo com seu avô materno, resolveram matá-lo. As primeiras tentativas de liquidá-lo não tiveram sucesso. Uma vez, por exemplo, o avô o levou ao alto de um morro e empurrou-o de lá no abismo. O menino, porém, virou folha seca e foi caindo devagarinho, voltando são e salvo para a aldeia. Até que o avô resolveu fazer uma grande fogueira e nela atirá-lo. Dias depois, quando foi ao local do assassinato para recolher as cinzas do menino, achou lá uma casa grande de fazenda, com bois e outros animais domésticos. Aukê não havia morrido mas, sim, transformara-se no primeiro homem civilizado. Aukê ordenou, então, ao avô que fosse buscar os outros habitantes da aldeia. E eles vieram. Quando Aukê os fez escolher entre a espingarda e o arco, os índios ficaram com medo de usar a primeira, preferindo o segundo. Por terem preferido o arco, os índios permaneceram como índios. Se tivessem escolhido a espingarda, teriam se transformado em civilizados. Aukê chorou com pena dos índios não terem escolhido a civilização." (MELATTI, J. C. Índios do Brasil. 1970. p. 27-8)

Aí está resumido o mito das várias tribos Timbira, do grupo Jê, que habitam o sul do Maranhão e o norte de Goiás, a respeito da origem dos brancos. Os nativos revelam em suas lendas uma história de dominação, de subordinação perante os europeus. E a atitude dos primeiros donos da nossa terra diante dos civilizados é parecida com a de muitos outros grupos tribais do continente em relação aos conquistadores, tidos como seres excepcionais: cavalo e cavaleiro num só corpo! Demônios donos do raio e do trovão - gerados por seus canhões.


Banquete funerário dos índios Bororó. Brasil Central. Wilhen Kuhnert

O mito dos Timbira diz que "antigamente não havia civilizados, mas apenas índios". Esse "antigamente" vai muito além do que pensamos. As pesquisas já permitem dizer que desde 8000 a.C. grupos humanos habitam a parte do continente sul-americano que hoje constitui o Brasil. Machados e martelos de pedra, pedaços de cristal de quartzo e ornamentos de conchas encontrados na região de Lagoa Santa, atual Estado de Minas Gerais, foram examinados e deram base a essa afirmação.

Mas isso não quer dizer que o ser humano é originário da América. Ele teria chegado ao nosso continente em sucessivas migrações, através do estreito de Bering, principalmente. Acredita-se que os primeiros homens a chegar à América do Norte, oriundos da Ásia, eram simples caçadores. Isso há mais de quarenta mil anos! Na região Ártica está o último grupo a chegar: o dos esquimós.


Índios brasileiros no mapa "Terra Brasilis". Atlas Miller, ca. 1519

E os povoadores do Brasil? Quase nada se sabe sobre a vida humana aqui até a chegada dos europeus. Isso é muito ruim, pois passamos a analisar tudo com noções criadas pelos colonizadores, que sempre se consideraram superiores aos nativos. O próprio termo índio, por exemplo, é uma criação dos espanhóis, fruto de um engano dos que se imaginavam nas Índias...

Para os diferentes grupos tribais que viviam aqui não existia Brasil. A nação de um índio é a sua terra, é a área onde ele vive com sua tribo. É Pindorama, a terra das palmeiras, para uns, é Piratininga para outros e assim por diante. Como disse um chefe Seattle ao presidente norte-americano em 1855, "somos parte da terra e ela é parte de nós".


Dança em frente ao tronco. Festa do Kuarup, na aldeia Kamayurá. Alto Xingu (MT). Foto: Marcello Casal Jr. Agência Brasil

Os grupos tribais mais importantes eram os do tronco Jê, Nu-aruak e Karib, além do Tupi. Não podemos generalizar os costumes dos Tupi para todos os outros grupos. Isso aconteceu porque foi com as tribos do tronco Tupi que os colonizadores tiveram o primeiro contato. Disso resultou que muitos indígenas aprenderam o tupi-guarani com missionários portugueses, pois não falavam essa língua. E, embora tivessem outras divindades, foram catequizados para crer em Tupã, o ser sobrenatural que, segundo a crença tupi, controlava o raio e o trovão.

Assim como os Tupi não eram o único grupo tribal brasileiro, havia na América pré-colombiana um grande número de povos, com modos de vida bastante diversos. Uma enorme riqueza e variação em matéria de vida social! Os Asteca, os Inca e os Maia realizaram magníficas obras arquitetônicas e artísticas e construíram grandes cidades, como Tenochtitlán, Cuzco e Chichén Itzá, além de conhecerem eficientes técnicas de irrigação e fertilização do solo. Povos como os Jê, os Charrua e os Esquimó, por outro lado, eram nômades ou seminômades, extremamente hábeis na pesca, na caça, na coleta ou na prática de uma agricultura simples.

Foi com os nativos da América que os europeus conheceram o tabaco, o cacau, o milho, o tomate e a batata. Cada sociedade indígena que os conquistadores "conheciam" tinha um novo mundo a revelar.

[...]

Em geral, os nativos do Brasil viviam - e os remanescentes ainda vivem - em regime de comunidade primitiva. A terra pertence a todos e cada casal faz uma roça, de onde extrai alimentos para si e seus filhos. Quando aquele pedaço de terra é abandonado, outros podem utilizá-lo. Arcos, flechas, machados de pedra e outros instrumentos de trabalho, quase sempre rudimentares, são de propriedade individual. A divisão das tarefas de sobrevivência é natural, isto é, por sexo e por idade. Todos trabalham! As mulheres cozinham, cuidam das crianças, plantam e colhem, ajudando diariamente os homens, nesse caso. Estes participam de atividades guerreiras, da caça e da pesca, da derrubada da floresta para fazer a lavoura. Troncos e tocos são queimados antes da semeadura: é a coivara, método que até hoje é utilizado no campo brasileiro.


Aldeia de caboclos, Jean-Baptiste Debret

Uma sociedade organizada dessa maneira não tem classes sociais. O trabalho para a sobrevivência também cabe aos chefes de aldeias, unidades políticas independentes que compõem as tribos. O índio é tão consciente de sua função social que muitos velhos preferem isolar-se do resto do grupo, para não atrapalhá-lo. [...]

Numa sociedade sem classes, a competição não é tão acirrada. Isso explica a forma curiosa como os índios Kanela terminam suas partidas de futebol, jogo que aprenderam com o branco: sempre fazem o possível para dar empate.

Vivendo solidariamente, a penúria de um é a de todos e a fartura chega também para toda a tribo. Assim, nas épocas de escassez, todos emagrecem, voltando ao peso normal nos períodos de abundância. Por isso, se entende o espanto dos índios, neste relato do sertanista Chico Meirelles:

"Quando levei os Xavante ao Rio de Janeiro pela primeira vez, eles quiseram saber de onde vinha nossa comida. Levei-os ao mercado, onde existe uma quantidade enorme de frutas e legumes, mas também existe uma multidão de crianças e velhos catando comida no lixo. Eles me perguntaram como que nós, tão ricos, que dávamos presentes a eles, permitíamos aquele espetáculo. A cena foi um choque para eles. Muitas vezes a camisa que damos ao índio, ele entrega a um trabalhador." (Revista Veja, 23/05/1973)

Numa sociedade com pequeno desenvolvimento técnico, a produção de excedentes é reduzida. Por isso, as trocas são poucas, quase que só existindo no caso de um grupo produzir o que o outro não tem. As trocas rituais servem para estreitar os laços de amizade e isso é feito também com os brancos, conforme comprova o interessante relato de Meirelles:

"No fim da tarde, reúno sanfoneiro, tocador de cavaquinho, de pandeiro, começo a fazer barulho. Passado algum tempo, os índios chegam perto e - sem sair a mata - imitam onças, guarás, gaviões. É fácil perceber que são índios, pois não é possível aparecer tanto bicho diferente de uma só vez... Com os Cinta-Larga, um dos presentes que deixamos foi meia dúzia de cachorrinhos, nascidos em nosso acampamento. Eles ficaram malucos com os animais, mas não sabiam como pedir mais cachorros. Sabe o que fizeram? Pegaram um camaleão, cortaram o rabo e deixaram amarrado numa árvore. Existe muito camaleão na floresta e eles não precisam dessa bicho. Deixei, então, mais cinco cachorros e, quando voltamos, já tinham pegado os cães e havia mais de cem camaleões amarrados nas árvores!"

Nada mais eficiente do que a educação entre os índios. Os curumins aprendem e se divertem ao mesmo tempo: conhecer não é algo desligado da vida, como hoje em dia acontece muitas vezes conosco. As indiazinhas brincam com bonecas, os meninos flecham calangos e passarinhos com pequenos arcos. Nesses jogos infantis, eles imitam os adultos. E os ajudam também: as meninas menores tomam conta de irmãos pequeninos, as maiores mastigam as raízes com que se fazem as bebidas. Os meninos, muitas vezes junto com os velhos, carregam armas e caças ou espantam os pássaros das roças, nas vésperas das colheitas. O valor que os nativos dão aos seus filhos está comprovado num simples exemplo: em muitas tribos os adultos só conversam com as crianças acocorados, ficando assim em pé de igualdade com elas.

Em suma, um universo diferente do nosso. Hoje já se revê tudo que se disse preconceituosamente sobre o "atraso" e a "preguiça" dos índios. E nem todos acham importante "integrar o índio à civilização". Uma grande autoridade no assunto, o sertanista Orlando Villas Boas, criador do Parque Nacional do Xingu, comenta:

"Que diferença enorme entre as duas humanidades: uma tranquila, onde o homem é dono de todos os seus atos; outra, uma sociedade em explosão, onde é preciso um aparato, um sistema repressivo para poder manter a ordem e a paz. Se um indivíduo der um grito no centro de São Paulo, uma rádio-patrulha poderá levá-lo preso. Se um índio der um tremendo berro no meio da aldeia ninguém olhará para ele, nem irá perguntar por que ele gritou. O índio é um homem livre." (Revista Visão, 10 fev. 1975)

A vida em Pindorama era extremamente oposta à do nosso país de hoje. Talvez por isso o escritor paulista Oswald de Andrade (1890-1954) tenha afirmado que "antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade..."

Não podemos, entretanto, mitificar o índio, imaginando-o um ser humano perfeito e suas tribos o paraíso na terra. Como qualquer sociedade, a comunidade primitiva tem suas "falhas": em muitos casos a mulher é discriminada, por vezes ocorrem guerras violentas entre grupos e a solidariedade quase sempre provém mais das adversidades da natureza do que de uma escolha racional. O que não existe é a exploração de uma classe por outra, e isso traz consequências positivas para todo o corpo social.

ALENCAR, Francisco [et alli]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 4-8.

NOTA: O texto "Pindorama - Os donos da terra" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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