"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 13 de março de 2014

A natureza encontrada pelos europeus: os animais

A caça, alimento básico dos índios, foi também a fonte principal de proteína dos brancos, porque sua abundância supria a falta dos diversos tipos de gado cuja criação apenas começava a ser implantada. As capivaras, os porcos-do-mato, os veados, os tatus, as pacas, as cotias e as aves silvestres eram pratos muito apreciados. Da anta, o mais curioso e o maior dos mamíferos brasileiros - animal pacífico e tímido que se escondia na água quando perseguido - aproveitava-se, além da carne, a pele que, depois de seca e curtida, era utilizada para fazer couraças ou escudos contra flechas.

Para divertimento e regalo com sua beleza ou alegria existiam os papagaios, as araras e os macacos, que atraíam com suas imitações de gestos ou sons.

Arara azul e amarela, Caspar Schmalkalden

Ao contar sobre os animais estranhos aos europeus, os cronistas apelavam para referenciais conhecidos, fazendo muitas vezes descrições bastante curiosas:

Há uns bichos nessa terra que também se comem e são tidos como a melhor caça que há no mato. Chamam-lhes tatus. Os tatus são do tamanho de coelhos e têm um casco como o da lagosta, mas repartido em muitas juntas como lâminas; parecem um cavalo armado, têm um rabo do mesmo casco comprido e o focinho como o de um leitão e não botam mais do que a cabeça para fora do casco, têm as pernas curtas e criam-se em covas, sua carne tem o sabor quase como o de galinha.

* Peixes. O quadro da fartura se completava com os peixes de mar e de água doce que constituíam a base da alimentação de pobres e ricos. Os proprietários de engenho empregavam diversos índios na pesca. As tainhas, muito abundantes na Bahia, eram secas e salgadas para alimentação dos escravos do engenho e dos marinheiros.

Nas praias colhiam-se siris, mariscos e mexilhões, e nos mangues eram encontrados os caranguejos uçaí em tal quantidade que completavam a ração dos escravos, como lembra Souza:

E não há morador nas fazendas da Bahia que não mande cada dia um índio mariscar destes caranguejos e de cada engenho vão quatro a cinco destes mariscadores com os quais dão de comer a toda gente de serviço: e não há índios destes que não tome cada dia trezentos e quatrocentos caranguejos que trazem vivos num cesto serrado feito de verga delgada, a que os índios chamam samburá; e recolhem em cada samburá destes um cento, pouco mais ou menos.

Caranguejo, Zacharias Wagener

* Onças, cobras e insetos. O "paraíso tropical" tinha, entretanto, seus perigos e desconfortos que aterrorizavam e infernizavam a vida dos moradores.

Em certas regiões, diversas espécies de onças negras, ruivas ou pintadas costumavam atacar índios e brancos pulando do alto das árvores, pelos caminhos, ou invadiam habitações caso não encontrassem o fogo pela frente.


Vale da Serra do Mar, Jean-Baptiste Debret

A criação de gado pelos colonos proporcionou uma nova fonte de alimento para esses grandes e poderosos felinos que podiam matar uma vaca com uma só patada.

Curioso é o mito difundido na época (e aceito por muitos até hoje) de que as onças preferiam a carne dos negros à dos brancos e índios. É bem possível que isso fosse utilizado como argumento de dissuasão para os negros com intenção de fugir para as matas.

Para os portugueses recém-chegados, eram causa de grande terror as cobras de todos os tipos e tamanhos, que matavam de diversas formas. Impressionantes eram as sucuris, as boiúnas e jibóias que tinham de dois a quinze ou até trinto metros de comprimento. Elas matavam por esmagamento do esqueleto da caça, que depois era devorada inteira. Finda a deglutição, a cobra se ocultava ou se acomodava para um longo processo de digestão que poderia levar até semanas. Essas cobras engoliam desde ratos e pacas até porcos-do-mato, veados, cães, vacas e seres humanos. As histórias sobre resíduos de todo tipo encontrados nas vísceras de cobras mortas aumentavam o pavor que elas já inspiravam. O perigo evidentemente era exagerado, uma vez que raramente atacavam o homem. As mais perigosas e assustadoras eram as cobras venenosas como a jararaca, que atacava à beira dos caminhos ou de cima das árvores; a coral, que se escondia entre pedras e ramos secos; e a cascavel, com seus guizos sinistros. As suas picadas eram causa frequente da morte dos povoadores, especialmente dos que andavam descalços no campo, como era o caso dos escravos.

* Saúvas. Gabriel Soares de Souza chama as saúvas de "a praga do Brasil", pois essas formigas, altamente organizadas e destrutivas, conseguiam dizimar em uma noite roças inteiras de milho, mandioca, cana ou árvores de frutas como laranjeiras, romeizas ou mesmo parreiras.

O seu número infindável, a capacidade de cortar folhas e transportá-las para seus extensos formigueiros, o gosto por plantas sem mato em volta, o seu alto nível de organização com espias e toda sorte de ardis para chegar ao alimento desanimavam os agricultores. Dois ou três ataques seguidos de saúva podiam destruir as plantas mais saudáveis. Souza lembrava que o Brasil podia atrair muitos povoadores

pois se dá nele tudo o que se pode desejar, o que esta maldição impede, de maneira que tira o gosto aos homens de plantarem senão aquilo sem o que não podem viver na terra.

O problema da saúva só podia ser enfrentado com a destruição manual dos formigueiros, o que era quase impraticável no sistema de lavoura extensiva da época. Esse problema se prolongou até meados do século XX, quando ficou famoso o slogan "ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil". Somente com a elaboração do inseticida DDT conseguiram-se vitórias significativas sobre esse inimigo legendário dos agricultores.

* Outras formigas e cupins.  Mais estranhas eram as formigas corredeiras ou de passagem que, em certas épocas de chuva intensa, punham-se a caminho aos milhões, ocupando uma extensa faixa de terreno, sem se deter diante de nenhum obstáculo. Não atacavam nem as plantas nem os animais maiores, apenas baratas, aranhas, ratos e até cobras que devoravam ou arrastavam consigo. À sua passagem todos fugiam apavorados, fossem cães, gatos, gado ou seres humanos.

Existiam ainda outros tipos de formigas grandes ou pequenas que invadiam as casas em busca de alimentos preparados ou de açúcar; ou ainda mordiam as pessoas, causando queimaduras muito dolorosas.

Grande prejuízo era causado pelos cupins que invadiam casas e atacavam móveis e madeiramentos atingidos através de túneis de barro fino que recobriam seus caminhos e ninhos. Depois de instalavam no próprio madeiramento que apodrecia e se esfarelava se não defendido a tempo.

Insetos, Zacharias Wagener

* O bicho-de-pé. O inseto mais curioso, traiçoeiro e perigoso para a saúde era o bicho-de-pé (o tungaçu dos índios), muito temido pelos portugueses.

Desenvolvia-se nas casas térreas e quintais empoeirados e atacava as pessoas pouco dadas à limpeza. Os cronistas acentuam que os asseados e não-preguiçosos eram pouco prejudicados, porque o remédio era lavar e examinar os pés todas as tardes para retirar os minúsculos insetos pretos que entravam na pele, especialmente entre os dedos e embaixo das unhas. Ao penetrar na carne, provocavam uma ligeira dor ou uma comichão, tão suave que a vítima não se dava conta dela. Os bichos-de-pé deviam ser retirados antes que pusessem os ovos em ninhos semelhantes a pequenas bolsas, que também deviam ser retirados inteiros para impedir a reprodução. Se isso não fosse feito, essas bolsas cresciam sem parar, criando calombos dolorosos que infeccionavam e podiam até provocar a amputação do pé.

O banho diário aprendido com os índios (que proporcionava conforto contra o calor e impedia muitas doenças de pele), e o costume de lavar os pés e retirar os bichos defenderam os colonos dos efeitos mais graves do bicho-de-pé.

MESGRAVIS, Laima; PINSKY, Carla Bassanezi. O Brasil que os europeus encontraram. São Paulo: Contexto, 2000. p. 20-5.

NOTA: O texto "A natureza encontrada pelos europeus: os animais" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento antropológico.

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