"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Noção de intimidade entre os séculos XVI e XVIII

Podemos olhar pelo buraco da fechadura para ver como nossos antepassados se relacionavam? De fechaduras, não! Elas custavam caro e o Brasil, na época da colonização, era pobre. Podemos, sim, enxergar através das frestas dos muros, das rachaduras das portas. Por ali se via que a noção de privacidade estava sendo “construída”, estava em gestação. E construída em meio a um ambiente de extrema precariedade e instabilidade. Em terras brasileiras, colonos tiveram que lutar, durante quase três séculos, contra o provisório: o material, o físico, o político e o econômico. “Viver em colônias” – como se dizia então – era o que faziam. Sobreviviam... E sobreviviam sob o signo do desconforto e da pobreza. Habitavam casas de meias paredes cobertas de telhas ou sapê, com divisão interna que pouco ensejava a intimidade. Nelas faltavam móveis que oferecessem algum conforto, ou boa iluminação, devido à falta de vidros. Instaladas em vilarejos sem arruamento, ali os animais domésticos pastavam à solta e havia lixo em toda parte. A água, esse bem mais precioso em nossos dias, só aquela de rios e poços ou a vendida em lombo de burro ou de escravos. Privacidade, portanto, zero.

A noção de intimidade no mundo dos homens entre os séculos XVI e XVIII se diferencia profundamente daquela que é a nossa do início do século XXI. A vida quotidiana naquela época era regulada por leis imperativas. Fazer sexo, andar nu ou ter relações eróticas eram práticas que correspondiam a ritos estabelecidos pelo grupo no qual se estava inserido. Regras, portanto, regulavam condutas. Leis eram interiorizadas. E o sentimento de coletividade, sobrepunha-se ao de individualidade.


Estudo de um homem nu, Auguste Jerndorff

Mas falar nesse assunto quando a América ainda era portuguesa implica compreender o que se entendia por privacidade há quase trezentos anos. Apenas em 1718 o conceito fará sua aparição. E foi o dicionarista jesuíta Raphael Bluteau quem, pioneiramente, esclareceu:

“Privado: uma pessoa que trata só de sua pessoa, de sua família e de seus interesses domésticos.” Mais tarde, em 1798, no seu Elucidário de palavras e termos, frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo definia que o verbete “privido” – palavra mais tarde substituída por “privado” – designava o que pertencia a uma particular pessoa. Quase cem anos foram necessários para que “privado” deixasse de significar o que fosse familiar e coletivo para se centrar no pessoal. Mas como fazer tal passagem e terras de escravidão e de pobreza material, onde, contrariamente à Europa ocidental, não havia muita separação entre privado e público? Como, num lugar onde todos sabiam de tudo e de todos?

Era diferente. Aqui, muitas pessoas andavam seminuas: sobretudo índios e escravos. As regras e os ritos da Europa não se tinham consolidado entre índios e africanos. Palavras como vergonha e pudor, recém-dicionarizadas no século XVI, continuavam ausentes dos “vocabulários” – nome que então se dava aos glossários -, até entre portugueses. Para os etimologistas, a palavra nasceu à época da chegada dos lusitanos às nossas costas. Antes, pudenda designava os órgãos sexuais, “vergonhosos”. Inicialmente associados à pudicícia, pudor e castidade eram sinônimos. Os primeiros dicionários deram o sentido atual ao termo, ligando-o à modéstia, decência e civilidade. Considerado natural nas mulheres, o pudor permitia afirmar que uma mulher nua podia ser mais pudica do que uma vestida. Isso, pois acreditava-se que, ao despir-se, ela se cobria com as vestes da vergonha.

O pudor que se definia nos dicionários não era um conceito espalhado na sociedade. Enquanto Isabel de Castela, em 1504, morria de uma ferida que não quis mostrar aos médicos, recebendo a extrema-unção sob os cobertores para não exibir nem os pés, muitos moradores da América portuguesa vestiam-se apenas com um minúsculo pedaço de tecido. Descobria-se, então, que existiam povos obedientes a diferentes noções de pudor.

Ora, tais noções foram pioneiras em esboçar a história do polimento das condutas, do crescimento do espaço privado e dos autoconstrangimentos que a modernidade foi trazendo. Daquilo que Michel Foucault chamou de cuidado de si; uma esfera cada vez mais definida entre o público e o privado. Esfera capaz de afastar, de forma progressiva e profunda, um do outro. E que conta a história do peso da cultura sobre o mundo das sensações imediatas. Cultura que nos levou da vida em grupo ou em família para o individualismo que é a marca de nosso tempo.


DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na História do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. p. 13-15.

NOTA: O texto "Noção de intimidade entre os séculos XVI e XVIII" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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