"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 12 de janeiro de 2014

D. Pedro I, o imperador libertino

O período abriu-se com a chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808. Entre os membros da família real, Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon y Bourbon já vinha mal falada por viver na Quinta do Ramalhão, palácio distante do marido, d. João. À boca pequena murmurava-se sobre a rainha com o comandante das tropas navais britânicas, Sydney Snith. A ele, ela ofereceu de presente uma espada e um anel de brilhantes. Temperamental e senhora de um projeto político pessoal – queria ser regente de Espanha -, a rainha teve, sim, seus amores. Todos encobertos pela capa da etiqueta e por cartas trocadas com o marido, nas quais, apesar de não viverem juntos, ele era chamado de “meu amor”.

A nora, recém-chegada de uma das mais sofisticadas cortes européias, a Áustria, não deixou de escrever aos familiares, chocada com o comportamento de Carlota Joaquina: “Sua conduta é vergonhosa, e desgraçadamente já se percebem as conseqüências tristes nas suas filhas mais novas, que têm uma educação péssima e sabem aos dez anos tanto como as outras que são casadas”.

Os casos amorosos da rainha eram conhecidos e o mais rumoroso deles resultou no assassinato a facadas – a mando da própria Carlota – da mulher de um funcionário do Banco do Brasil, sua rival. Enquanto isso, comentava-se a solidão de d. João V, atenuada – dizem biógrafos – graças aos cuidados de seu valete de quarto.


D. Pedro I, imperador do Brasil, Henrique José da Silva

Já o filho d. Pedro não escondia de ninguém seus casos. Tampouco se importava em ser discreto com a própria esposa, a princesa Leopoldina Carolina, com que casou em 1817. Segundo biógrafos, “seu apetite sexual” era insaciável. Ele não conhecia limites nem diante da família nem diante do marido da mulher desejada. Não importava a condição social: mucamas, estrangeiras, criadas ou damas da corte. Delavat, o cônsul espanhol no Rio, em 1826, acusava-o de ser “variável em suas conexões com o belo sexo”. E não hesitava em manter relações com várias mulheres de uma mesma família, como fez com a dançarina Noemi Thierry e sua irmã. Com poucos meses de casado, já estava enamorado de Noemi. Costumava visitar a moça na companhia da própria esposa, na casa de seu camareiro, d. Pedro Cauper. Enquanto as filhas de Cauper entretinham d. Leopoldina, d. Pedro escapava para algum canto com Noemi. Quando a esposa compreendeu a situação e queixou-se ao sogro, esse despachou Cauper e a família para Portugal. Noemi, grávida de seis meses, foi removida junto com o marido, um oficial, para Pernambuco.


Dona Leopoldina, então Princesa Real-Regente do Reino do Brasil, preside a reunião do Conselho de Ministros em 2 de setembro de 1822, Georgina de Albuquerque

O mesmo Delavat dizia sobre d. Pedro que tinha ele “um objeto distinto para cada semana, nenhuma conseguia fixar sua inclinação”. Nenhuma até ir a São Paulo, em setembro de 1822, quando proclamou a Independência. Lá encontrou Domitila de Castro Canto e Mello. Tinha d. Pedro 24 anos e Domitila, 25. Belíssima? Não exatamente. Certo pendor para a gordura, três partos, cicatrizes, um rosto fino e comprido, aceso pelo olhar moreno. Domitila, mãe de três filhos e acusada de adultério, tomara uma facada do marido, certa manhã em que voltava, às escondidas, para casa. O fato era conhecido na cidade de São Paulo e manchava o nome da família.

Entre os dias 29 e 30 de agosto de 1822, tinha início uma aventura romanesca que marcaria a vida de d. Pedro. Esse affair extravasou a alcova e refletiu-se, mais tarde, na vida política e familiar do príncipe, bem como na imagem que dele se fazia dentro e fora do país.

Passado um ano, a data do primeiro encontro foi registrada pelo punho do próprio d. Pedro: “o dia 29 deste mês em que começaram nossas desgraças e desgostos em consequência de nos ajuntarmos pela primeira vez, então tão contentes, hoje, tão saudosos”. E em outra missiva fala do dia 30 como aquele em que “comecei a ter amizade com você”. Logo após tornar-se imperador, d. Pedro deixa de lado a discrição, transformando “Titília” numa “teúda e manteúda” que é apresentada à corte e instalada em casa [...].

Em novembro de 1822, d. Pedro felicitava Domitila por “estar pejada” e anuncia-se “disposto a sacrifícios” para honrar os compromissos de pai. Mas a criança nasceu morta. Em 1824, vem ao mundo Isabel Maria de Alcântara Brasileira. Em 1826, no dia do imperial aniversário, ela tornou-se a marquesa de Santos. Aconteceu então um fato documentado: tendo os diretores do Teatro da Constituição recusado a entrada da marquesa numa das representações, sob pretexto de que sua conduta não era digna da boa sociedade, baixou-se ordem para que fossem fechadas as portas do teatro e presos aqueles diretores. O imperador era um amante zeloso!


Retrato de Domitila de Castro Canto e Melo, Marquesa de Santos, Francisco Pedro do Amaral

Amante, sim, e quanto paixão! Suas cartas não deixam mentir. São recheadas de suspiros e voluptuosidade: “Meu amor, meu tudo”, “meu amor, minha Titília”, “meu benzinho... vou aos seus pés”, “aceite o coração deste que é seu verdadeiro, fiel, constante, desvelado e agradecido amigo e amante”, rabiscava. E mais incisivo: “Forte gosto foi o de ontem à noite que tivemos. Ainda me parece que estou na obra. Que prazer!! Que consolação!!!”. E terminava “com votos de amor do coração deste seu amante constante e verdadeiro que se derrete de gosto quando... com mecê. Ou mandava “um beijo para a minha coisa”; “abraços e beijos e fo...”. E depois, mortificado de ciúmes e suspeitas, perguntava, “será possível que estimes mais a alguém do que a mim?” E assinava-se “seu Imperador”, “seu fogo foguinho”, “o Demonão”, quando não acrescia eroticamente, como se vê em carta no Museu Imperial, o desenho do real pênis ejaculando em louvor da amante. Tudo cheirando – como disse um biógrafo – a lençóis molhados e em desalinho.

O amor adúltero desenvolvia-se na frente de todos e dividia a Corte. Os irmãos Andrada, em particular José Bonifácio, reprovavam a atitude do jovem imperador, que consideravam comprometedora da imagem do novo império no exterior. Ainda como viscondessa, Domitila foi elevada a dama camarista de dona Leopoldina e acampanhou o casal numa viagem de dois meses à Bahia. O secretário da imperatriz escreveu, em fevereiro de 1826, ao chanceler austríaco Klemens Wenzel von Metternich para reprovar a “fatal publicidade da ligação” com a marquesa de Santos, debitando-a à “resignação e introspecção” da princesa austríaca.

A possibilidade de d. Pedro I casar-se com a “Pompadour tropical” após a viuvez horrorizou a aristocracia europeia. Multiplicaram-se as murmurações contra a Castro, que reunia em São Cristóvão uma família bastante característica desses tempos: filhos legítimos e ilegítimos, seus sete irmãos, sobrinhos e cunhadas, o tio materno Manuel Alves, a tia-avó dona Flávia e as primas Santana Lopes. O barão de Maréchall anotava em seu relatório enviado à Áustria: “A família aflui de todos os cantos; uma avó, uma irmã e uns primos acabam de chegar”.

A morte de dona Leopoldina, no final de 1826, aos 29 anos, obriga d. Pedro a tomar certos cuidados, pois não faltaram manifestações acusando Domitila de ter envenenado a imperatriz. A própria Leopoldina se queixara, em carta ao pai, que o marido a maltratava “na presença daquela que é causa de todas as minhas desgraças”. Insultos, ameaças, proibições de entrar no palácio e mesmo uma tentativa de linchamento revelam a reação dos moradores do Rio à presença da concubina.

Em 1827, já gozando de todas as prerrogativas de marquesa, Domitila recebe ainda a condecoração da Real Ordem de Santa Isabel de Portugal, além de conseguir títulos de nobreza para o restante da família. Tanto agrado deixou marcas e aguçou desafetos, dando munição aos que se batiam pelo fim das honrarias. Os receios de um casamento da amante com o imperador se espalhavam. Metternich não escondia seu horror: “É inconcebível que o imperador pense em se casar com a senhora de Santos, pois seu marido é vivo”. Perigo havia, mas, quando se alastraram notícias da busca de uma noiva para o imperador viúvo, as cartas de amor que Domitila recebia mudaram de tom. Agora, d. Pedro falava em “gratidão e afeto particular” e chamava-a de “minha amiga”. Grávida pela quarta vez do imperador, percebe suas intenções quando ele pede que se distancie da corte, com a promessa de uma pensão generosa. A “concubina e sua comitiva” – relatava Maréchall aos superiores austríacos – seriam afastadas antes da chegada da nova esposa. A 13 de agosto de 1827, nascia, no Rio de Janeiro, Maria Isabel de Alcântara Brasileira, a quarta filha do casal de amantes.

Assinado em 1829, o contrato de casamento com a princesa alemã Amélia de Leuchtenberg, segunda esposa de d. Pedro, pôs um fim ao caso.


Segundas núpcias do imperador D. Pedro I com dona Amélia de Leuchtenberg, Jean-Baptiste Debret

Nessa época, ser libertino não significava apenas seduzir todas. Mas, sobretudo, não se deixar seduzir. E a lista de amantes do imperador é considerável, embora incompleta: Mariquita Cauper, filha do camareiro Pedro Cauper; Ana Rita, mulher de Plácido de Abreu; Joaquina ou Ludovina Avilez, esposa do general Jorge Avilez; Carmem Garcia, esposa do naturalista Bompland; Maria Joana, filha do capitão Ferreira Sodré; Regina de Satourville, mulher de um ourives da rua do Ouvidor; Carlota Círíaco da Cunha, filha de um rico industrial; Clémence Saisset, mulher de um comerciante francês; e outras, como Joaninha Mosqueiro, que lhe daria um filho, José, nascido em 1829; Luizinha Meneses, Andresa Santos, Gertrudes Meireles, Ana Sofia Steinhausen e Androsinha Carneiro Leão. Do serralho ainda constaram a viscondessa de Sorocaba, irmã da marquesa de Santos; Maria Benedita Delfim Pereira; Luisa Clara de Meneses, mineira de Paracatu, mulher do general José Severino de Albuquerque; Heloísa Henri, mestra de dança francesa, mulher do dr. Roque Schüh; as mães de Umbelino Alberto de Campo Limpo e de Teotônio Meireles; bem como a atriz Ludovina Soares. Nenhuma se negava a d. Pedro I. Por ser rei e por ser fogoso.


DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do brasil, 2011. p. 57-62.

NOTA: O texto "D. Pedro I, o imperador libertino" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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