"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Conservadorismo: o valor das tradições

Para os governantes tradicionais da Europa – reis, aristocratas, clérigos -, a Revolução Francesa foi um grande mal que abriu um ferimento quase fatal na civilização. Indignados e aterrorizados com a violência revolucionária, o terror e as guerras, os governantes tradicionais buscaram refutar a visão de mundo dos philosophes, que dera origem à Revolução. Para eles, os direitos naturais, a igualdade, a bondade do homem e o progresso permanente eram doutrinas perversas que haviam produzido os “assassinos” jacobinos. Encontraram, no conservadorismo, uma filosofia política capaz de combater a ideologia iluminista.


O Congresso se diverte, charge de Forceval, 1814. Enquanto os imperadores da Áustria e da Rússia e o rei da Prússia dançam de mãos dadas, o rei da Suécia segura firmemente sua coroa.

A obra de Edmund Burke, Reflexões sobre a revolução na França (1790), contribuiu para a formação do pensamento conservador. Burke (1729-1797), estadista e teórico político britânico, quis advertir seus conterrâneos dos perigos inerentes à ideologia dos revolucionários. Embora escrevendo em 1790, Burke vaticinou astuciosamente que a Revolução levaria ao terror e à ditadura militar. Para ele, fanáticos armados com princípios perniciosos – ideias abstratas divorciadas da experiência histórica – haviam arrastado a França ao atoleiro da Revolução. Burke desenvolveu uma filosofia política coerente que serviu de contrapeso à ideologia do Iluminismo e da Revolução.

- Hostilidade à Revolução Francesa. Os filósofos iluministas e os reformadores franceses, fascinados pelas descobertas na ciência, haviam acreditado que a mente humana podia também transformar as instituições sociais e as tradições antigas de acordo com modelos racionais. O progresso através da razão tornou-se sua fé. Dedicados a construir um novo futuro, os revolucionários romperam abruptamente com os velhos costumes, a autoridade tradicional e os modos familiares de pensamento.

Para os conservadores, que, como os românticos, veneraram o passado, essa era a arrogância e o mal supremos. Consideravam os revolucionários como homens presunçosos que irrefletidamente rompiam os elos da sociedade com as instituições e tradições antigas e tachavam de ignorância as veneráveis crenças religiosas e morais. Ao atacarem os costumes consagrados pelo tempo, os revolucionários haviam privado a sociedade francesa de liderança moral e aberto a porta à anarquia e ao terror. “Vocês tiveram um mau começo”, escreveu Burke a respeito dos revolucionários, “porque começaram por desprezar tudo o que lhes pertence. [...]. Quando as antigas opiniões e as velhas normas de vida são postas de lado, a perda talvez não possa ser estimada. A partir desse momento não temos nenhuma bússola para nos guiar; nem podemos saber claramente a que porto nos dirigir”.

Os philosophes e os reformadores franceses tinham manifestado uma confiança ilimitada no poder da razão humana de compreender e mudar a sociedade. Embora apreciassem as capacidades racionais do homem, os conservadores também reconheciam as limitações da razão. Consideravam a Revolução como um desenvolvimento natural de uma filosofia iluminista arrogante, que atribuía demasiado valor à razão e buscava reformar a sociedade de acordo com princípios abstratos.

Para os conservadores, os seres humanos não eram naturalmente bons. A maldade dos homens não se devia a um meio imperfeito, como haviam proclamado os filósofos, mas estava no íntimo da natureza humana, como ensinava o cristianismo. O mal era controlado não pela razão, mas por instituições, tradições e crenças experimentadas e testadas. Sem esses hábitos herdados dos ancestrais, afirmavam os conservadores, a ordem social era ameaçada pela pecaminosa natureza humana.

Em razão de terem durado séculos, afirmavam os conservadores, a monarquia, a aristocracia e a Igreja tinham seu valor. Ao desprezar e erradicar essas antigas instituições, os revolucionários tinham endurecido os corações das pessoas, pervertido sua moral e instigado-as a cometer terríveis afrontas umas contra as outras e contra a sociedade. Para os conservadores, os revolucionários haviam reduzido o povo e a sociedade a abstrações separadas de seus contextos históricos; haviam elaborado constituições baseadas no inaceitável princípio de que o poder do governo emana do consenso dos governados.

Para os conservadores, Deus e a história eram as únicas fontes legítimas de autoridade política. Os Estados não eram constituídos; eram apenas uma expressão da experiência moral, religiosa e histórica de uma nação. Nenhuma constituição legítima ou sólida podia ser elaborada por um grupo reunido com tal finalidade. Tiras de papel com terminologia legal e visões filosóficas não podiam produzir um governo efetivo; ao contrário, um sistema político sólido desenvolvia-se gradual e inexplicavelmente em resposta às circunstâncias.

- A busca da estabilidade social. A filosofia liberal do Iluminismo e a Revolução Francesa começaram com o indivíduo. Os filósofos e os revolucionários almejavam uma sociedade em que o indivíduo fosse livre e autônomo. Os conservadores acreditavam que a sociedade não era uma combinação de indivíduos desconexos, mas um organismo vivo que se mantinha unido por laços centenários. O individualismo colocaria em risco a estabilidade social, destruiria a obediência à lei e fragmentaria a sociedade em átomos isolados e egoístas.

Os conservadores consideravam a igualdade como outra abstração perniciosa que contradizia toda a experiência histórica. Para eles, a sociedade era naturalmente hierárquica, e acreditavam que alguns homens, em virtude de sua inteligência, educação, riqueza e nascimento, eram mais bem qualificados para governar e instruir os menos capazes. Afirmavam que, ao negar a existência de uma elite natural e erradicar uma classe governante há muito estabelecida, que aprendera sua arte através da experiência, os revolucionários haviam privado a sociedade de líderes efetivos, trazido a desordem interna e preparado o caminho para uma ditadura militar.

O conservadorismo apontou uma limitação do Iluminismo. Mostrou que os seres humanos e as relações sociais são muito mais complexos do que haviam imaginado os filósofos. As pessoas nem sempre aceitam a lógica rigorosa do filósofo e não estão prontas a romper com os costumes antigos, por mais ilógicos que possam parecer. Muitas vezes, as pessoas julgam que os costumes familiares e as religiões dos antepassados são guias mais satisfatórios do que os programas dos filósofos. O inflexível poder da tradição continua sendo um obstáculo para todas as visões de reformadores. Os teóricos conservadores advertiram que a violência revolucionária, quando se perseguem sonhos utópicos, transforma os políticos numa cruzada ideológica que termina em terror e despotismo. Essas advertências deram frutos amargos no século XX.


MARVIN, Perry. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 383-385.

NOTA: O texto "Conservadorismo: o valor das tradições" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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