"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

As migrações bárbaras

O encontro entre Átila e o Papa Leão I, Rafael Sanzio

Desde a República, os contatos entre as populações germânicas e o Mundo Romano são mencionados pelos escritores romanos. Esses contatos por vezes eram violentos: em fins do século II a.C., címbrios e teutões invadiram e pilharam a Itália até serem vencidos pelas legiões de Mário em Aix-en-Provence (102 a.C.) e Vercelli (101 a.C.); no século I a.C., o Imperador Augusto enviou expedições para subjugar a Germânia, mas a destruição das legiões de Varo (9 d.C.) resultou no abandono da política de conquistas além do Rio Reno. Os contatos, entretanto, em sua maioria foram pacíficos: Augusto, fundador do Principado, foi quem iniciou a prática de recrutar germanos para integrar as legiões romanas. Desde os Antonino, o recrutamento não era mais de indivíduos, mas de tribos inteiras, que eram alojadas dentro das fronteiras romanas na condição de federados.

À medida que o relacionamento entre o Mundo Germânico e o Mundo Romano se intensificou, modificações processaram-se nas duas sociedades.

Nos séculos IV e V, entretanto, povos inteiros, envolvendo milhares de indivíduos, entraram em massa no Império Romano, levando o pânico e a destruição aonde chegavam. A instalação dessas populações germânicas em territórios romanos acabou precipitando a desintegração do Império Romano: no Ocidente, a antiga unidade imperial fragmentou-se em Reinos independentes, dominados por aristocracias romano-germânicas.

A invasão dos bárbaros, Ulpiano Checa

Essa movimentação de povos germânicos é comumente denominada invasões bárbaras. Essa expressão não é correta, pois "estes movimentos de povos antes são migrações que verdadeiras invasões. Se não foram pacíficas, não se inspiraram na hostilidade que pressupõe o termo invasão [...]. Constituem parte de um conjunto amplo de deslocamentos de populações, que prosseguiram até o século XV e que afetaram não só a parte ocidental do Império Romano mas toda a Europa, a Ásia até a China, e a África do Norte." (GENICOT, L.; HOUSSIAU, P. Le Moyen Âge. Tournai: Casterman, 1959. p. 17.)

Que razões determinariam essa imigração em massa nos séculos IV e V? Entre outras, a busca de novas terras para cultivo e sobretudo para criação do gado, uma vez que a tendência ao resfriamento das frias estepes (tundra) da Europa Setentrional vinha acarretando um progressivo deslocamento de povos para a Europa Meridional. Não se pode deixar de considerar também que as riquezas existentes no Império Romano funcionaram como fator preponderante para os germanos atravessarem fronteiras desguarnecidas ou precariamente defendidas: o saque ainda era uma prática bastante usual entre eles.

É inegável, porém, que foi a chegada dos hunos às planícies da Europa Oriental o fator preponderante para a grande movimentação de povos germânicos: o avanço dos hunos para o Ocidente levou os germanos a recuar, buscando segurança contra esses temíveis invasores.

Os hunos eram povos tártaro-mongóis e procediam de regiões asiáticas fronteiriças à China. Não se conhecem com exatidão as razões que as teriam levado a migrar para as planícies europeias. Bastante primitivos, levaram uma existência nômade, criando seus cavalos, vivendo em carroças e tendas. Eram exímios cavaleiros e arqueiros, e seguiam um chefe que lhes garantisse vitórias capazes de possibilitar pilhagens compensadoras.

"Sua ferocidade supera tudo. Por meio de um ferro, marcam com profundas cicatrizes as faces dos recém-nascidos, a fim de destruir aí todo o germe de barba [...] Não cozinham, nem temperam o que comem. Nutrem-se apenas de raízes silvestres ou de carne crua do primeiro animal que aparece, carne esta que esquentam, por algum tempo, sobre o dorso de seu cavalo entre suas próprias pernas. Não possuem abrigo. Entre eles não se usam casas, nem tampouco túmulos. Não encontraríamos nem mesmo uma cabana. Passam a vida percorrendo as montanhas e as florestas, enrijados desde o berço contra o frio, a fome, a sede [...] A cavalo dia e noite [...] dormem reclinados sobre o magro pescoço de sua cavalgadura." (Descrição dos hunos feita pelo historiador romano Amiano Marcelino (320-390). Citado por COURCELLE, P. História Literária das Grandes Invasões Germânicas. Petrópolis: Vozes, 1955. p. 151-152.)

A chegada dos hunos às planícies da Europa Oriental provocou intensa movimentação de povos germânicos: ao se deslocarem, recuando diante dos hunos, empurravam-se uns aos outros, terminando por se espalharem pelo Império Romano.

Os primeiros a sofrer o impacto dos hunos foram os godos: incapazes de enfrentarem as velozes e ferozes hordas húnicas, os ostrogodos recuaram, obrigando os visigodos a atravessarem o Rio Danúbio (talvez em número de 200 mil) e a buscarem uma ilusória segurança no interior do Império Romano. Acolhidos como federados pelo Imperador Valente (376), a impossibilidade de alimentar tão numerosa massa humana logo transformou os visigodos em saqueadores, que, em seu avanço pelos Bálcãs, a tudo destruíam. A tentativa romana de submetê-los resultou em fragorosa derrota em Andrinopla, onde o próprio Imperador Valente foi morto (378). Era o sinal de novos tempos: a superioridade da cavalaria germânica sobre as tropas imperiais romanas.

Em fins do século IV, os visigodos, sob a chefia de Alarico, abandonaram a Trácia, onde novamente haviam se tornado federados, e recomeçaram suas andanças: pilharam os Bálcãs e se dirigiram para a Itália; tomaram e saquearam Roma (410), marcharam para o sul da Península, destruindo Cápua e Nola. A morte de Alarico paralisou-os momentaneamente.

O saque de Roma pelos vândalos, Heinrich Leutemann

Nesse meio tempo, os vândalos, suevos e alanos (406), aproveitando-se do desguarnecimento das fronteiras do Rio Reno - as legiões haviam sido deslocadas para a Itália a fim de lutarem contra os visigodos - entraram aos milhares pela Gália. Fugiam dos hunos, mas atrás de si deixavam o incêndio, a destruição. a morte... Prosseguiram até a Península Ibérica, onde foram reconhecidos como federados (411): os suevos e uma parte dos vândalos estabeleceram-se na Bética (a futura Andaluzia), enquanto os alanos ocuparam o Vale do Ebro, espalhando-se até a Lusitânia (o futuro Portugal).

"Os bárbaros arremetem pelas Espanhas. O flagelo da peste causa igualmente grande desordem. A tirania dos cobradores pilha as rendas e fortunas, escondidas nas cidades. A soldadesca as esgota. A fome campeia tão atroz que, sob o império dela, os homens devoram carne humana [...] Os animais, acostumados aos cadáveres dos que haviam perecido pela fome, pelo ferro, pela peste, matam mesmo os homens em plena força [...] Assim, os quatro flagelos do ferro, da fome, da peste, dos animais campeiam em toda a parte [...]" (Depoimento do cronista romano Idaco, que viveu no século V. Citado por COURCELLE, P. História Literária das Grandes Invasões Germânicas. Petrópolis: Vozes, 1955. p. 83-84.)

Aproveitando a brecha aberta e o caos reinante na Gália, novos invasores atravessaram o Rio Reno: os alamanos apoderaram-se da Alsácia, e os burgúndios ocuparam regiões entre Spira e Worms.

No mesmo ano, anglos, saxões e jutos assaltaram a Bretanha.

Mas a paz ainda não voltara à Gália, pois nova invasão ocorreu: os visigodos, agora chefiados por Ataulfo (410-415), abandonaram a arruinada Península Italiana e se lançaram sobre a Gália Narbonesa, onde se tornaram federados (413), o que não os impediu de ocupar a Aquitânia. O assassinato de Ataulfo, que chegara a reivindicar o cargo de Imperador, provocou novas mudanças:

- os visigodos receberam a incumbência de reconquistar a Península Ibérica;
- os vândalos, expulsos da região que ocupavam, passaram ao Norte da África, onde o Reino dos Vândalos foi organizado na época de Genserico (428-477);
- os alanos, submetidos aos visigodos, fixaram-se a noroeste da Península Ibérica;
- os suevos formaram seu Reino em terras da Galícia e atual Portugal;
- os visigodos, por sua vez, criaram seu Reino que englobava a Península Ibérica e a Aquitânia (na atual França).

Parecia, enfim, que a paz retornara ao Ocidente. A ilusão logo se desfez, pois os hunos, chefiados por Átila (439-453), retiraram-se de terras da atual Hungria, devastaram os Bálcãs e, em troca de elevada soma em dinheiro, renunciaram a atacar Constantinopla. Em 451, invadiram a Gália, destruindo tudo, até serem derrotados na batalha dos Campos Mauríacos, às vezes erradamente chamada de Campos Catalúnicos. Para deter os hunos, formara-se uma força militar heterogênea, composta de legiões romanas e contingentes de francos, borgúndios, visigodos, saxões e alanos.


Apesar de vencidos, os hunos, sempre sob a chefia de Átila, o chamado "Flagelo de Deus", lançaram-se, no ano seguinte, sobre a Itália. Cidades foram saqueadas, sendo a destruição e a ruína a marca da passagem da horda huna no caminho para nova pilhagem de Roma. Atingidos pela fome e pela peste, os hunos renunciaram ao saque de Roma e se comprometeram a retirar-se da península, recedendo, em troca, vultoso tributo pago pelo Papa Leão Magno (452). No ano seguinte, com a morte de Átila, os hunos se dispersaram, voltando ao nomadismo pastoril.

Genserico saqueando Roma, Karl Briullov

Ao longo do século V, novos Reinos foram-se organizando em meio à deposição do último Imperador do Ocidente (476) e à chegada de novos invasores, como os ostrogodos que se estabeleceram na Itália, onde o Reino dos Ostrogodos foi organizado no governo de Teodorico.

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et al]. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 418-422.

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