"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Impérios marítimos e terrestres no Sudeste da Ásia: Srivijava e Khmer

A importância de alianças pessoais - baseadas em laços de parentesco ou em relações contratuais - pode ser vista na forma que até impérios tomaram em algumas partes do mundo. Os Estados do sudeste da Ásia podem ser pensados como sistemas complexos de lealdades pessoais que formaram a base de relações de poder, mais do que como territórios com limites definidos administrados por representantes de um ou outro governante. Os limites precisos dos territórios controlados por um governante não eram uma preocupação principal; o que importava era a rede de lealdades das quais o governante poderia depender. Os impérios marítimos e terrestres do sudeste da Ásia são exemplos disso.

O grande império insular de Srivijayan (670-1025) foi construído sobre a riqueza produzida pelo comércio marítimo, juntamente com uma combinação de força militar e perspicácia política do datus (chefes ou governantes) da capital, Palembang, na ilha de Sumatra. Dadas as flutuações do comércio internacional e as variações nas habilidades humanas, o poder militar e a capacidade política, sozinhos, eram insuficientes para garantir a sobrevivência de Srivijava. Os líderes precisavam também de um sistema de crenças que pudesse unir as regiões conquistadas, com diferentes religiões e grupos étnicos, sob uma lealdade comum a Palembang, Os governantes de Srivijava encontraram tal ideologia unificadora na religião universal do budismo.

O budismo cresceu rapidamente no arquipélago sudeste-asiático durante o século XII. Inscrições rupestres antigas, em Palembang, revelaram que houve um governante que misturou o imaginário local da montanha sagrada e do mar com a veneração tradicional dos ancestrais com símbolos budistas e éticos. Os temas budistas impostos sobre as tradições nativas providenciaram um conjunto comum de ideias que transcendiam as comunidades locais. Para reforçar essa ideologia e construir o prestígio regional sobre ela, os governantes de Srivijava utilizaram alguns dos lucros de seu império para serem patrocinadores da escolástica budista em seus territórios e financiar grandes construções de templos, como o grande monumento budista de Borobudur, do século VIII, na ilha de Java. Nos séculos X e XI, o império dedicava-se a templos em locais tão distantes quando Bengala e a costa sudeste da Índia.

No sudeste do continente asiático, o Império Khmer (802-1432), em seu auge no século XII, controlava provavelmente um milhão de pessoas na área dos atuais Camboja, Laos, Tailândia e partes de Burma, Vietnã e da península malaia. Uma rede de canais, utilizados tanto para transporte como para irrigação, ligava fisicamente o Estado Khmer, e os reservatórios ajudavam a controlar a precipitação irregular de um clima de monções, estocando a água das chuvas de monções para uso posterior.

Tanto o hinduísmo quanto o budismo sancionaram a autoridade dos governantes e os laços culturais e religiosos comuns entre o povo Khmer. Seus governantes misturaram o hinduísmo com as crenças nativas para consolidar seu poder sobre o território em expansão, e a linguagem sânscrita foi adotada pela Corte Khmer. A adoração do deu hindu Shiva, que era identificado como o "Senhor da Montanha", estava ligada à crença nativa na santidade das montanhas, a casa dos espíritos ancestrais. A adoração a Shiva foi formalizada no culto ao devaraja (deus-rei), do governador Jayavarman II (770-834), que construiu o Estado Khmer, por meio de uma combinação de conquista e formação de uma rede de alianças pessoais. Seguindo Jayavarman, as estátuas dos deuses eram fundias com a pessoa do governante, simbolizada pela emergência do título pessoal do monarca com o nome de um deus. Após o século XII, na cidade capital de Angkor Thom, o domínio budista era refletido pelas fachadas do complexo de templos de Bayon, que retratavam a divindade budista de Lokeshvara. Essa divindade budista era identificada com o construtor de Angkor Thom, Jayavarman VII (1181-1218?), cuja autoridade foi reforçada por meio do novo culto ao Buddha-raja (rei-Buda).

Projetos de obras públicas massivas, realizados pela monarquia Khmer, como o complexo de templos hindus de Angkor Wat (wat significa "templo") construído no século XII, são testemunhos da habilidade do Estado Khmer em coletar e redistribuir recursos econômicos em grande escala. Isso foi realizado por meio de uma rede de templos, que serviam como centros de redistribuição, de vilas para templos locais, e subindo hierarquicamente até o templo central na capital do reino. Dessa forma, tanto a riqueza material quanto a capital simbólica, os símbolos culturais e religiosos utilizados para integrar a sociedade Khmer, foram distribuídos por uma complexa rede de templos espalhada pelo reino.



Angkor Wat

Embora o Khmer não tenha controlado o comércio marítimo que o teria permitido conectar os arredores agrícolas ao comércio marítimo, como fez Srivijava, ambos os impérios controlaram recursos massivos, incorporando diferentes povos e culturas dentro de seus reinos, e criando bases ideológicas com o uso da hinduísmo e do budismo, que unificaram a região sob seu controle. Tanto no Império de Srivijaya, quanto no Khmer, novas identidades coletivas foram construídas por meio da religião e suportadas por riquezas econômicas produzidas pelo trabalho de pessoas envolvidas na agricultura ou no comércio marítimo e fluvial. Templos e outros monumentos religiosos foram expressões vitais da identidade coletiva, conforme eles manifestam a riqueza material comandada por governantes e sancionada pela religião. As alianças pessoais estão no coração de ambos os impérios, e não há dúvida de que estavam presentes em um âmbito local, onde eles faziam parte de uma vida cotidiana que permanecia sem registros. As pessoas continuaram a se identificar intimamente com os parentes e com a vila, mesmo quando eles viviam à sombra de poderosos impérios.

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 204-206.

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