"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

América 2: "Retornavam os deuses com as armas secretas"

Códice Durán

Em sua passagem por Tenerife, durante sua primeira viagem, Colombo presenciara uma erupção vulcânica. Foi como um presságio de tudo o que viria depois nas imensas terras novas que iam interromper a rota ocidental para a Ásia. A América estava ali, adivinhada desde suas suas costas infinitas: a conquista se estendeu em vagalhões, qual maré furiosa. Os chefes militares substituíam os almirantes, e as tripulações se transformavam em hostes invasoras. As bulas do Papa tinham feito apostólica concessão da África para a coroa de Portugal, outorgando à coroa de Castela as terras "desconhecidas como aquelas até aqui descobertas por vossos enviados e aqueloutras que se descobrirão no futuro (...)": a América tinha sido doada à rainha Isabel. Em 1508, uma nova bula concedeu à coroa espanhola, perpetuamente, todos os dízimos arrecadados na América: o cobiçado patronato universal sobre a Igreja do Novo Mundo incluía o direito real de auferir todos os benefícios eclesiásticos.

O Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494, permitiu a Portugal a ocupação de territórios americanos além da linha divisória traçada pelo Papa, e em 1530 Martim Afonso de Souza fundou as primeiras povoações portuguesas no Brasil, expulsando os franceses. Já então os espanhóis, cruzando selvas infernais e desertos infinitos, tinham avançado bastante no processo da exploração e da conquista. Em 1513, o Pacífico resplandecia aos olhos de Vasco Nunes de Balboa; no outono de 1522, retornavam à Espanha os sobreviventes da expedição de Fernão de Magalhães, que uniram pela primeira vez os dois oceanos e, ao dar uma volta completa no mundo, constataram que ele era redondo; três anos antes tinham partido de Cuba, na direção do México, as dez naus de Hernán Cortez, e em 1523 Pedro de Alvarado lançou-se à conquista da América Central; Francisco Pizarro entrou triunfalmente em Cuzco em 1533, apoderando-se do coração do império dos incas; em 1540, Pedro de Valdívia atravessava o deserto de Atacama e fundava Santiago do Chile. Os conquistadores penetravam no Chaco e revelavam o Novo Mundo desde o Peru até a foz do rio mais caudaloso do planeta.

Havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais, engenheiros e selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas nativas conhecia o ferro e o arado, o vidro e a pólvora, e tampouco empregava a roda. A civilização que se abateu sobre estas terras, vindas do outro lado do mar, vivia a explosão criadora do Renascimento: a América surgia como uma invenção a mais, incorporada junto com a pólvora, a imprensa, o papel e a bússola ao agitado nascimento da Idade Moderna. O desnível de desenvolvimento dos dois mundos explica em grande parte a relativa facilidade com que sucumbiram as civilizações nativas. Hernán Cortez desembarcou em Veracruz acompanhado de não mais de 100 marinheiros e 508 soldados; trazia 16 cavalos, 32 bestas, dez canhões de bronze e alguns arcabuzes, mosquetes e pistolas. No entanto, a capital dos astecas, Tenochtitlán, era então cinco vezes maior do que Madri e dobrava a população de Sevilha, a maior das cidades espanholas. Francisco Pizarro entrou em Cajamarca com 180 soldados e 37 cavalos.

Os indígenas, no começo, foram derrotados pelo assombro. O imperador Montezuma, em seu palácio, recebeu as primeiras notícias: uma montanha andava a movimentar-se no mar. Depois chegaram outros mensageiros: "(...) muito espanto lhe causou ouvir o tiro de canhão, como retumba seu estrépito e leva as pessoas a desmaiarem, com os ouvidos atordoados. Quando acontece o tiro, uma bola de pedra salta de suas entranhas: sai chovendo fogo (...)". Os estrangeiros traziam "veados" para montar e, montados, ficavam "tão no alto como os tetos". Traziam o corpo coberto, "aparecem só as caras. São brancas, como se fossem de cal. Têm o cabelo amarelo, embora alguns o tenham preto. A barba deles é grande (...)". Montezuma acreditou que era o deus Quetzalcoátl que voltava. Pouco antes, oito presságios tinham anunciado esse retorno. os caçadores lhes haviam trazido uma ave que possuía na cabeça um diadema redondo, com a forma de um espelho, que refletia o céu com o sol já no poente. Nesse espelho Montezuma viu marchar sobre o México os esquadrões de guerreiros. O deus Quetzalcoátl viera pelo leste, e pelo leste tinha ido embora: era branco e barbudo. Também branco e barbudo era Viracocha, o deus bissexual dos incas. E o leste era o berço dos antepassados heroicos dos maias.

Os deuses vingativos que agora regressavam para acertar contas com seus povos traziam armaduras e cotas de malha, reluzentes escudos que devolviam os dardos e as pedras; suas armas expediam raios mortíferos e obscureciam a atmosfera com fumaças irrespiráveis. Os conquistadores praticavam também, com habilidade política, a técnica da traição e da intriga. Souberam explorar, por exemplo, o rancor dos povos submetidos ao domínio imperial dos astecas e as divisões que fragmentavam o poder dos incas. Os tlaxcaltecas foram aliados de Cortez, e Pizarro usou em seu proveito a guerra entre os herdeiros do império incaico, os irmãos inimigos Huáscar e Atahualpa. Os conquistadores granjearam cúmplices entre as classes dominantes intermediárias, sacerdotes, funcionários, militares, uma vez abatidas, criminosamente, as chefias indígenas mais altas. Mas também usaram outras armas ou, se preferirmos, outros fatores trabalharam objetivamente para a vitória dos invasores. Os cavalos e as bactérias, por exemplo.

Os cavalos, como os camelos, eram originários da América, mas se extinguiram nestas terras. Introduzidos na Europa pelos cavaleiros árabes, tiveram no Velho Mundo imensa serventia militar e econômica. Ao reaparecerem na América, através da conquista, colaboraram para a atribuição de forças mágicas aos invasores ante os olhos atônitos dos indígenas. Segundo uma versão, o inca Atahualpa caiu de costas quando viu chegar os primeiros soldados espanhóis, montados em briosos cavalos ornados de guizos e penachos que corriam desencadeando tropéis e polvadeira. O cacique Tecum, à frente dos herdeiros dos maias, decapitou o cavalo de Pedro de Alvarado, convencido de que fazia parte do conquistador: Alvarado se ergueu e o matou. Escassos cavalos, cobertos de arreios de guerra, dispersaram as massas indígenas e semearam o terror e a morte. "Os padres e os missionários espalharam na fantasia vernácula", durante o processo colonizador, "que os cavalos eram de origem sagrada, já que Santiago, o padroeiro da Espanha, montando um potro branco, vencera importantes batalhas contra mouros e judeus, com a ajuda da Divina Providência".

Bactérias e vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus traziam, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias enfermidades pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e repugnante que provocava a febre e descompunha a carne? "Lá foram se meter em Tlaxcala", narra um testemunho indígena, "então se espalhou a epidemia: tosse, grãos ardentes, que queimam". E outro: "A muitos deu morte a pegajosa, pesada, dura doença dos grãos". Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham resistência às novas enfermidades, e os que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro estima que mais da metade da população aborígene da América, Austrália e ilhas oceânicas morreu contaminada logo ao primeiro contato com os homens brancos.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p.34-38.

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