"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 15 de junho de 2013

Aurora do século XX: Os sinos das igrejas serão silenciados?

Ruínas da Mesquita do Califa Haken no Cairo, 
Prosper Marihat

Igrejas, mesquitas, templos, pagodes e sinagogas tinham importância vital para a vida cotidiana, ainda que ocasionalmente estivessem sob ataque. Praticamente a cada segundo, em algum lugar, queimavam-se incensos, acendiam-se velas ou tocavam-se sinos. Ao meio-dia ou antes do culto divino, o toque dos sinos era uma das melodias mais difundidas pela Europa - mais do que é hoje. Os ocidentais que chegavam ao Oriente achavam que os sinos dos templos, com seu toque lento e suave, criavam uma atmosfera diferente daquela que existia em suas terras. Um dos mais conhecidos poemas da época, Mandalay, em que Rudyard Kipling fala da cidade de mesmo nome, descreve o som do velho pagode birmanês: "Pois o vento sopra nas palmeiras, e os sinos do templo anunciam." Mesmo os mais austeros protestantes, que evitavam decididamente os sinos e as velas, seguiam rituais, inclusive o de agradecer a Deus antes de cada refeição.

Em praticamente todos os países ocidentais, os adultos se casavam e as crianças eram batizadas - recebendo quase sempre um nome cristão - em igrejas. Na época não se imaginava que as novelas viriam a competir com a Bíblia como fonte de inspiração para a escolha dos nomes dos bebês. Os enterros - a cremação era rara na Europa - quase sempre eram acompanhados pela leitura da Bíblia ou de um livro de orações. Os cemitérios possuíam áreas separadas para que as pessoas fossem enterradas conforme a religião. Na morte, os que comungavam da mesma crença ficavam lado a lado.

O budismo e o cristianismo, religiões mundiais com maior número de adeptos, continuavam a pregar que a vida na Terra era imperfeita. A maior parte das pessoas acreditava, profunda ou superficialmente, que a morte não era o fim da vida e que a vida após a morte poderia ser, para muitos, infinitamente mais gratificante. "A crença em alguma forma de imortalidade humana é quase universal", escreveu Alfred Garvie, estudioso britânico de religiões, encarregado de escrever o verbete imortalidade para uma importante enciclopédia. Naquela época, a crença no inferno e no paraíso - embora a primeira estivesse em declínio - era vista como um dos pilares da civilização ocidental.

No início do século, o cristianismo parecia mais ávido do que o Islã por espalhar a sua mensagem - este se encontrava politicamente enfraquecido e os cristãos ocupavam a maioria das regiões islâmicas. Os Países Baixos controlavam Java e Sumatra; a Grã-Bretanha dominava as áreas muçulmanas da Índia e o estados malaios; e os cristãos russos detinham o poder nas regiões islâmicas das planícies e montanhas da Ásia Central, com exceção do Afeganistão. No norte da África, as regiões islâmicas eram, em sua maioria, colônias da França, da Grã-Bretanha ou da Espanha. Os muçulmanos mais ardorosos sentiam-se um tanto humilhados por verem sua pátria dominada pelos cristãos, o domingo ser estabelecido como dia oficial de veneração e bebidas alcoólicas serem vendidas livremente. O Império Otomano, com base em Constantinopla, permanecia como o único defensor poderoso do Islã, dominando boa parte da Ásia Menor, a Península Arábica, um pedaço modesto do norte da África e os Balcãs. A Primeira Guerra Mundial despedaçaria esse império.

Milhares de congregações cristãs da América do Norte, da Europa, da Nova Zelândia e de outros lugares financiavam pelotões de missionários - mulheres e homens - que partiam para outras terras com o objetivo de instalar, sob um governo colonial, igrejas e, talvez, um hospital e uma escola. A conversão podia atingir uma ilha inteira ou toda uma região, mas nas populosas China e Índia os convertidos, ainda que numerosos, não passavam de uma pequena parcela. [...]

As religiões mais importantes tiveram de enfrentar inimigos poderosos. Um deles foi a ciência, quase uma religião rival, capaz de empreender os próprios milagres. Alguns teólogos, usando as então mais recentes habilidades linguísticas, arqueológicas e científicas, questionavam a correção literal da Bíblia, inclusive a criação do mundo no prazo de uma semana. Muitos cristãos mais instruídos sentiam a fé vacilar. Queriam continuar crendo, mas seu intelecto dizia não. [...]

Os papas deram pouca atenção às novas bandeiras que proclamavam as virtudes da ciência, do socialismo e do livre debate teológico, e a opinião desses líderes religiosos continuou a ter bastante peso em questões internacionais. Em tempos de paz, o papa Leão XIII era provavelmente a pessoa mais influente do mundo. Quando, porém, uma guerra envolvia grandes potências, qualquer peça poderosa de artilharia influía mais do que ele, pois os países católicos tinham deixado de ser dominantes. Três grandes potências econômicas - os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Alemanha - abrigavam um número maior de protestantes do que de católicos.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 18-21.


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