"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 16 de abril de 2013

A Macedônia e o Helenismo

Mosaico retratando Alexandre Magno, ca. 100 a.C., Pompeia. Artistas desconhecidos

O novo mundo no Mediterrâneo e no Oriente Próximo foi em grande parte definido pelos gregos. Paradoxalmente, isso aconteceu durante a decadência das cidades-Estado. Quando elas se tornaram mais frágeis e menos capazes de resistir a interferências externas do desastre da Guerra do Peloponeso, uma nova força começou a surgir no limite norte da Hélade: o Reino da Macedônia. Alguns indivíduos - na maioria macedônios - alegavam que este reino era um Estado grego e que fazia parte do mundo grego. Os macedônios falavam grego e frequentavam os festivais gregos; seus reis reivindicavam descender de famílias gregas - nada menos do que de Aquiles, o grande herói aqueu da Ilíada. Mas muitos gregos discordavam. Achavam que os macedônios eram um grupo bárbaro pouco civilizado e certamente não teriam a mesma condição dos povos cultos das cidades do Egeu e da Sicília.


Vênus de Milo

Sem dúvida a Macedônia era um lugar mais tosco e rude do que, digamos, Atenas ou Corinto, e os seus reis precisavam controlar uma aristocracia de chefes montanheses não muito impressionados por Sócrates. Contudo, a Macedônia mudou o curso da História grega graças à coincidência de alguns fatos favoráveis. Um deles foi o surgimento ali, em 359 a.C., de um príncipe capaz e ambicioso - ambicioso, entre outras coisas, de que a Macedônia fosse reconhecida como grega - Filipe II, regente do reino. As circunstâncias foram-lhe muito favoráveis: os Estados gregos estavam desgastados pelas suas longas lutas e a Pérsia sofrera uma série de revoltas que a enfraquecera. A Macedônia era rica em ouro, e portanto podia financiar um exército forte e efetivo, cuja eficácia se deveu muito aos esforços pessoais de Filipe. Na juventude, em Tebas, ele estudara os métodos militares gregos. Decidiu que a resposta à tática hoplita seria uma nova formação: a falange de dez fileiras de infantaria armadas com lanças, duas vezes mais longas do que as espadas comuns. Os homens que as carregavam ficavam bem mais distantes do que os hoplitas, de modo que as lanças da retaguarda se projetavam entre as das primeiras fileiras. O resultado era uma disposição de pontas em forma de ouriço, uma arma formidável. Para apoiar a retaguarda havia uma cavalaria com armaduras, cercada por uma fileira de armas pesadas, como catapultas.


Alexandre na tumba de Ciro, o Grande, Pierre-Henri de Valenciennes

* Alexandre, o Grande. O exército da Macedônia era tão eficiente que sob o reinado de Filipe e de seu filho, acabou de fato com a independência de muitas cidades da Grécia Continental e com um período da História humana, a era da pólis. O ano de 335 a.C., quando Tebas foi arrasada e os seus habitantes foram escravizados como punição pela rebeldia, serve de marco. Houve poucas revoltas posteriores, mas a grande era da Grécia clássica terminara. Isto pode não bastar para garantir aos reis da Macedônia um lugar na História, mas mudanças ainda mais espetaculares aconteceriam no reinado do filho de Filipe, Alexandre, um dos poucos homens na História que tradicionalmente é chamado de "o Grande". Ele parecia tão fascinante aos seus sucessores que as lendas em torno do seu nome fizeram com que ele fosse idolatrado por milhares de anos. Embora primordialmente e acima de tudo um soldado e um conquistador, ele foi muito mais. [...] é claro que ele foi uma força decisiva, não apenas na Grécia, como na História mundial a partir de 334 a.C., quando atravessou a Ásia para atacar os persas, chefiando um exército constituído de muitos Estados gregos, até 323 a.C., quando morreu na Babilônia (talvez de tifo), com apenas 33 anos.

"Alexandre - diz Toynbee - viveu o bastante para superar a estreita concepção de uma ascendência helênica sobre os não-helenos, em favor do ideal maior da fraternidade humana. Em seu contato com os persas, reconheceu e admitiu todas as virtudes que lhes permitiram governar uma grande parte do mundo por mais de  duzentos anos, e passou a sonhar com um mundo governado em conjunto por persas e helenos. Esse idealista precoce, porém, era capaz de matar amigos e companheiros, em ataques de fúria alcoólica, tal como o herói homérico que o lado adolescente de sua natureza aspirava a ser. E sua intemperança habitual foi, certamente, a causa de sua morte súbita e prematura, em Babilônia, em 323 a.C. Tivera tempo para destroçar um grande império, mas apenas começava a por em prática os planos de reconstrução que lhe amadureciam no espírito".

Alexandre era um grego apaixonado. Reverenciava a memória de Aquiles, seu suposto antepassado, e carregava nas suas campanhas um exemplar precioso de Homero. Seu tutor fora Aristóteles. Ele era um soldado valente - e às vezes afoito -, bem como um general astuto e um grande líder que uma vez feitas suas conquistas, comportava-se com simpatia para com os povos cujos governantes derrubara; também era violento: certa vez, bêbado, parece ter matado um amigo numa briga. Pode ter concordado com o assassinato do próprio pai.


“Alexandre considerava-se enviado pelos deuses para ser um governante geral e pacificador do mundo. Usando as forças das armas quando não conseguia unir os homens pela luz e pela razão, canalizou todos os recursos para um único e mesmo fim, misturando vidas, maneiras, casamentos e costumes dos homens, como se estivessem numa taça de amor”, afirma o historiador grego Plutarco.

Apesar dos seus defeitos, eles não impediram um assombroso registro do seu sucesso. Alexandre derrotou os persas na Ásia Menor na Batalha de Issus, e depois marchou através de toda a extensão deste Império, primeiro rumo ao sul, através da Síria até o Egito, e depois de volta ao norte e a leste, rumo à Mesopotâmia, perseguindo o rei Dario III, que morreu ainda em combate; foi o fim do Império Aquemênida. Alexandre continuou cruzando o Irã, o Afeganistão e o Rio Oxus, e seguiu adiante, até Samarcanda. Fundou uma cidade no Rio Jaxartes. Depois voltou para o sul novamente, para invadir a Índia. Duzentos quilômetros mais ou menos além do Indo, em pleno Punjab, os seus generais, exaustos, fizeram com que ele voltasse. Foi uma terrível marcha de volta pelo Indo, ao longo da costa norte do Golfo Pérsico, até alcançar a Babilônia, onde Alexandre morreu.

"Com suas grandes vitórias - escreve o mestre inglês Petrie -, Alexandre revela-se um consumado mestre de tática; e a organização que trazia possíveis tais vitórias prova seu domínio da estratégia. Com respeito aos seus dotes de estadista é menos fácil julgá-lo, pois na verdade faltou-lhe tempo para demonstrá-los. Era um grande conquistador, mas talvez não acertasse a consolidar suas conquistas. Todavia, sua obra no Egito nos dá um exemplo admirável do que poderia ter realizado em outras partes.

Seja como for, corresponde-lhe o mérito de ter aberto para o Ocidente as portas do Oriente e de ter franqueado o caminho ao incremento da civilização grega. E embora a unidade do seu império ruísse num instante, as cidades que fundou perduraram como sentinelas avançadas do helenismo, mantendo vivas as influências gregas e a língua grega até os confins do mundo".

Sua curta vida foi muito mais do que de simples conquistas. O seu "império" logo desmoronou e deixou de ter um único centro de governo, mas ele espalhou a influência helênica a lugares jamais alcançados. Alexandre fundou muitas cidades (muitas delas com o seu nome; ainda há várias Alexandrias e outros locais com nomes que são mais ou menos "disfarces" do seu) e mesclou gregos e asiáticos no seu exército para que aprendessem uns com os outros e se tornassem uma força mais cosmopolita. Recrutou jovens persas nobres e certa vez presidiu a um casamento coletivo de nove mil soldados seus com mulheres orientais. Manteve nos postos os antigos funcionários do rei persa, para que administrassem as terras que conquistara. Chegou a adotar roupas persas, o que não agradou muito aos seus companheiros gregos, que tampouco apreciaram quando ele fez com que visitantes se ajoelhassem diante dele, como faziam os reis persas.

"Sua concepção da 'homónoia' ou unidade fundamental da raça humana - diz o erudito humanista Alfonso Reyes -, a qual quis agrupar num Estado universal, é uma concepção de imensa transcendência. Supera a visão política do seu mestre Aristóteles. Seduz os filósofos estóicos. Prepara o Cristianismo".

Derrubar o mais poderoso império da época e encerrar a era das cidades gregas (tanto na Ásia quanto na Europa) foram feitos que modificaram o mundo, embora o seu impacto total não fosse óbvio de imediato. Muitos resultados positivos só apareceriam depois da morte de Alexandre. Então, tanto nas terras gregas quanto nas não gregas, seriam sentidos os efeitos das ideias e dos padrões gregos que ele espalhou tão amplamente. É por isso que as palavras "helenismo" e "helenístico" foram cunhadas e aplicadas tanto à era que se seguiu à morte de Alexandre quanto à área coberta formalmente pelo seu império (grosso modo, a região entre o Adriático e o Egito, a oeste, e as montanhas do Afeganistão, a leste). O império em si pouco durou; Alexandre não deixou herdeiros que pudessem assumi-lo e os seus generais começaram a disputar seu espólio.


“Historiadores modernos – comenta Dennis Wepman - não negam que Alexandre foi frequentemente cruel ou que conduziu mais por sonho de glória pessoal do que por elevados ideais de fraternidade ou de paz mundial. A morte e a destruição que acompanhavam suas marchas tornam qualquer outra conclusão ridícula. Mas é pelos resultados da vida de um homem que a História deve julgá-lo. E é como uma força propulsora do progresso e do pensamento humanos que Alexandre conserva o título de ‘o Grande’”.

Pintura helenística de um túmulo trácio de Kazanlak representando noivos. Próximo da antiga cidade de Seuthopolis, século IV A.C. Artistas desconhecidos

* Os sucessores de Alexandre: o mundo helenístico. Demorou quarenta anos mais ou menos para que as terras do antigo império se estabeleceram num novo padrão, como um grupo de reinos, cada qual governado por um dos homens de Alexandre ou por seus descendentes. Às vezes eles são citados como "sucessores" ou "diádocos". O mais rico destes reinos ficava no Egito, onde um general macedônio chamado Ptolomeu assumiu o controle. Conseguiu se apropriar do corpo de Alexandre e sepultou-o num esplêndido túmulo em Alexandria, o que lhe deu um prestígio especial e a primazia de ser o seu guardião. Ptolomeu fundou a última dinastia egípcia da Antiguidade, que governaria o Egito até 30 a.C. (quando morreu a última das ptolomaicas, a famosa Cleópatra), bem como a Palestina, Chipre e grande parte da Líbia. Contudo o Egito não foi o maior dos Estados Sucessores. Embora as conquistas indianas de Alexandre passassem para um rei indiano, a família de Seleuco (outro general macedônio) por certo tempo governou uma área que se estendia do Afeganistão ao Mediterrâneo; o reino selêucida não permaneceu tão grande assim. No início do século III a.C., um novo reino se estabeleceu em Pérgamo, na Ásia Menor, e na Báctria outro reino foi fundado por soldados gregos. Quanto à Macedônia, depois de ter sido invadida por bárbaros, passou para uma outra dinastia, e os antigos Estados gregos, organizados de tempos em tempos em ligas vagas, continuaram a se deteriorar [...]. O grego se tornou a língua oficial de todo o Oriente Próximo e a mais usada como língua cotidiana, principalmente em todas as novas cidades, fundadas em número considerável [...]. Mas eram muito diferentes das velhas cidades gregas do Egeu porque eram muito maiores. Alexandria, no Egito, Antioquia, na Síria, e a capital selêucida perto da Babilônia logo teriam aproximadamente duzentos mil habitantes. Também não eram autônomas, de forma alguma. As cidades selêucidas, por exemplo, eram governadas pelos administradores e mecanismos das províncias tomadas ao antigo Império Persa, um despotismo bárbaro aos olhos dos gregos do século V a.C. Começaram a surgir burocracias apoiadas nas antigas tradições do Egito e da Mesopotâmia e não nas da pólis. Os próprios governantes se atribuíam honras semidivinas, como os antigos reis persas. No Egito, os ptolomaicos reviveram o antigo culto aos faraós e Ptolomeu I adotou o título de Soter, que significa "Salvador".

Ainda assim as cidades pelo menos pareciam um pouco gregas. Suas construções obedeciam à tradição grega. Possuíam teatros, ginásios, centros para jogos e festivais muito semelhantes aos do passado. A tradição grega também aparecia no estilo artístico. Talvez a mais conhecida de todas as estátuas gregas, a de Afrodite, encontrada na Ilha de Milo, atualmente no Louvre, em Paris (a Vênus de Milo), é obra helenística. [...] Logo a literatura grega recebia contribuições de escritores das novas cidades, que encontravam público e patrocinadores num ambiente de duradoura e crescente prosperidade. As guerras de Alexandre haviam liberado um enorme butim em ouro e objetos preciosos, o que estimulou o desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo propiciando a cobrança de taxas para financiar os exércitos e as burocracias existentes. O mundo helenístico era um negócio em maior escala do que fora o antigo mundo grego, e um palco mais amplo para a cultura grega.

O mais claro indício de continuidade do passado surgiu num ramo da atividade intelectual: o estudo das ciências. A Alexandria egípcia foi especialmente famosa neste campo. Ali viveu Euclides, o homem que sistematizou a geometria e deu-lhe a forma que perdurou até o século XIX. Entre outros alexandrinos estava o primeiro homem a medir o tamanho da Terra, bem como o primeiro a usar o vapor para gerar energia. Arquimedes, famoso pela construção de máquinas de guerra na Sicília, assim como pelas suas descobertas teóricas na Física, provavelmente foi aluno de Euclides; e outro grego helenístico, Aristarco (este de Samos, e não de Alexandria), chegou até mesmo à ideia de que a Terra se movia em torno do Sol, e não o contrário (esta ideia não foi aceita pelos seus contemporâneos porque não se enquadrava na física aristotélica). Estes conhecimentos e hipóteses (e há muitas outras) representaram um grande avanço no conjunto de ferramentas humanas. Contudo, a ciência helenística foi refreada, porque não havia a tendência nem o aparato para testar experimentalmente algumas teorias, e porque havia uma tendência pelas ciências matemáticas mais do que pelas ciências aplicadas. [...] No entanto, o mundo helenístico teve sucesso ao produzir uma nova e importante filosofia ética: o Estoicismo, que, em termos gerais, ensinava que o homem deve ser virtuoso, quaisquer que sejam as consequências. Ser virtuoso, dizia esta filosofia, consistia, acima de tudo, em obedecer às leis naturais que governam o universo e todos os homens, e não apenas os gregos. Foi a primeira tentativa de estabelecer uma filosofia para toda a humanidade. Também produziu a primeira condenação da escravatura, um extraordinário avanço mental, jamais conseguido pelos filósofos da Grécia clássica, e que teria profunda influência durante séculos entre a elite de uma nova potência: Roma.

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 207-214.

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