"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 30 de abril de 2013

No limiar da História

As diferenças nas maneiras tradicionais de se fazer as coisas demonstram que algumas comunidades humanas se tornaram muito diferenciadas já no final dos tempos pré-históricos. O burilar das próprias tradições começou em tempos muito remotos, no Período Paleolítico. Mas as diferenças ficaram muito mais agudas com o assentamento que, é claro, era outro resultado do advento da agricultura. Bem acima do vale de um dos tributários do Tigre, nas colinas do Curdistão, havia, por volta de 6500 a.C., uma pequena aldeia, num lugar chamado Jarmo. O seu povo ainda não sabia como queimar cerâmica, mas já possuía casas de argila, às vezes com alicerces de pedra, e com mais de um aposento. Algumas de suas habitações possuíam mobília construída, como fornos e bacias no chão. Os habitantes podiam cortar e moer tigelas de pedra macia, que também servia para fabricar ornamentos, como contas e braceletes. Praticavam a agricultura e possuíam animais domésticos, como carneiros, cabras, bois, porcos e, é claro, cães. Já em Jarmo uma pequena riqueza distinguia algumas pessoas de outras: os possuidores de ornamentos ou armas valiosos. Nesse local havia um papel para os especialistas. Os seus negócios precisavam ser regulamentados e a colheita e a armazenagem precisavam ser fiscalizadas. No entanto Jarmo provavelmente continha apenas umas poucas centenas de pessoas. Bem a Oeste, na Palestina, Jericó provavelmente possuía três mil habitantes nesta época. Um grupo tão grande, sem falar nos problemas de administrar e manter o controle de um importante oásis, teria produzido habilidades especializadas e um governo ordenado era mais necessário do que em Jarmo. Então, uma das coisas que estavam acontecendo, pelo menos no Oriente Próximo durante o Período Neolítico, era que grupos maiores estavam se desenvolvendo, aos quais as pessoas deviam lealdade e obediência. A vida humana já percorrera um longo caminho desde as tribos nômades até a organização da vida social humana em unidades territoriais estabelecidas sob as mesmas leis, uma forma de governar com que estamos familiarizados até hoje.


Stonehenge, John Constable

A maneira pela qual homens e mulheres viam seus papéis nestas sociedades primitivas ainda é desconhecida para nós, mas deve estar enraizada nos fatos biológicos e econômicos [...]. Como as crianças - futuro da tribo - exigiam cuidados mais prolongados, a divisão do trabalho entre os sexos, os homens saindo para caçar e coletar alimentos enquanto as mulheres ficavam em casa, provavelmente estava bem estabelecida antes que que as comunidades se tornassem mais assentadas. Nessa divisão cresceriam as diferentes tradições de educação, os meninos saindo com os homens quando cresciam, para serem capazes de acompanhar (ou pelo menos não perturbar) a caça, enquanto as mulheres podem ter aprendido a observar cuidadosamente a vida das plantas disponíveis no assentamento, para reunir plantações especialmente úteis e nutritivas. Talvez em muitos lugares elas já fornecessem a principal força de trabalho para a agricultura [...].

[...]

Algumas partes do mundo, por volta de 5000 a.C., já estavam bem dentro do Período Neolítico; a vida humana, então, já era bem diversificada e complexa. Era bastante diferente da vida do Homo erectus, que, com todos os seus grandes avanços, ainda era muito igual por toda parte. No entanto, o Homo erectus tivera uma vida muito diferente dos pobres e vulneráveis espécimes do Australopithecus que se agachavam nos lagos e enchiam o que hoje é chamado de Desfiladeiro de Olduvai há dois milhões de anos, munidos de meios de sobrevivência pouco melhores do que os animais que vagueavam pelas redondezas e com quem compartilhavam o suprimento de comida.

No Período Neolítico estamos num mundo cheio de variedade e potencial humano. Esta variedade iria aumentar. Algumas comunidades humanas progrediram rapidamente, mas outras não. Novas forças operariam no desenvolvimento humano à medida que diferentes povos entraram em contato e aprenderam uns com os outros, ou refletiram sobre a sua própria experiência e mergulharam em novos experimentos. [...]

[...]

[...] Uma das poucas e boas descrições do Homo sapiens é que ele é acima de tudo um animal capaz de fazer mudanças. A evidência disso aparece no que ele fez: a sua História. [...]

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 66-69 e 71.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

As paisagens do Imperialismo

As atitudes de compreensão da natureza como força a ser controlada e explorada pela civilização cruzaram com a expansão do imperialismo no século XIX. Essa noção filosófica de conquista da natureza progressivamente tornou-se o modelo e o padrão para sociedades não ocidentais, e sua aceitação global levou a humanidade até a porta do desastre ecológico, no final do século XX. O imperialismo ecológico entrelaçou-se aos objetivos políticos das potências coloniais. Por exemplo, a Índia Britânica explorou e destruiu florestas do oeste do Himalaia entre 1815 e 1914, enquanto construía o serviço de administração de madeireiras mais sofisticado do mundo colonial. A colonização da natureza era vista como tão inevitável quanto a subjugação de povos pelos poderes coloniais.

Europeus consideravam jardins cultivados e cercados como as paisagens mais atraentes e idílicas durante o século XIX, um tipo de colonização da natureza. O legado da imagem dessa colonização é encontrado nos parques nacionais do mundo: do Quênia até Gana e até Yosemite, paisagens naturais protegidas tornaram-se necessárias para preservar ao menos alguma lembrança da natureza e da vida selvagem que quase foi perdida na turbulência do imperialismo no século XIX e começo do século XX. Oficiais coloniais e outros europeus coletaram plantas e animais de todo o mundo para criar jardins botânicos e parques zoológicos, bem como para explorá-los mascarados pelo valioso conhecimento e por produtos comercializáveis. Por meio do que alguns estudiosos chamaram de "bioprospecção", os encontros globais de colonizadores com novos ambientes ameaçou aqueles que não tinham poder. Por exemplo, tanto os escravos africanos quanto os ameríndios utilizavam abortivos e outras plantas para controlar a fertilidade feminina e resistir à opressão, mas o conhecimento dessas plantas nunca foi transferido à Europa, possivelmente como consequência do empreendimento colonial ter sido dominado por homens. Hoje, corporações multinacionais rivalizam pelo controle do copyright sobre novas espécies de plantas altamente produtivas.

Casa Miwok, Parque Nacional de Yosemite, Estados Unidos. Foto: Urban


Da Tailândia à Amazônia, da África Equatorial até o nordeste do Pacífico nos Estados Unidos e no Canadá, a exploração de florestas modificou as paisagens globais drasticamente e impingiu padrões centenários de uso de recursos e de terras. O estudo científico auxiliou a habilidade das sociedades de aprofundar a compreensão e a exploração do mundo natural. A tendência global em relação ao desmatamento não era tanto uma resposta às pressões do aumento populacional quanto era a consequência das forças mundiais de mercado, geradas pelas demandas globais por mercadorias e matérias-primas. Em particular, os mercados das nações industrializadas demandaram madeira para construção, impressão de jornais e outros produtos de papel. Produto da colaboração entre nações ricas e menos desenvolvidas, o desflorestamento tornou muitas populações rurais mais dependentes das necessidades do mercado internacional e do controle externo. A ironia é que em várias partes do mundo, à medida que a informação científica sobre os sistemas de florestas do mundo ia aumentado, as florestas, progressivamente exploradas, desapareceram. Ao final do século XX, um total estimado em 20,4 milhões de hectares de florestas tropicais estava sendo perdido anualmente. Muito devido ao desmatamento, aproximadamente 1,4% dos biomas mundiais contém praticamente a metade da biodiversidade do planeta, tornando a perda futura de florestas ainda mais crítica.

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 59.

sábado, 27 de abril de 2013

A cidade romana

O mundo romano era um mundo de cidades que falavam latim, grego, mas muitas outras línguas, como o púnico, o céltico ou o aramaico, para mencionar apenas algumas delas. A cultura urbana podia encontrar-se bem longe, fisicamente, das ruas da cidade, em pleno campo, nas fazendas ou villae rusticae, pois nelas havia uma pars urbana, e suas paredes exibiam pinturas e seus pisos mosaicos com temas tipicamente citadinos, como as lutas de gladiadores. Mesmo quem vivia no campo tinha como referencial a cidade.

Para os romanos, assim como para os gregos, a cidade envolvia o campo e a parte urbana era seu centro. Compunha-se de urbs, cercada pelas muralhas, e rus ou ager, o campo. Esse recinto amuralhado, considerado sagrado, era o pomerium, onde estavam os vivos e desarmados. Os mortos [...] deviam ser enterrados fora do pomerium, em geral em tumbas que ladeavam as estradas que davam acesso à urbs. Os soldados armados também deviam reunir-se fora, no campus, campo.Assim como na cidade grega, havia na romana a distinção entre a parte alta, destinada aos templos e, o plano, onde ficava o fórum, ou mercado. No centro, deveria estar um templo, o fórum e outros edifícios públicos, como aquele que albergava as reuniões do conselho municipal, chamado de ordo decurionum, ou ordem de decuriões.

Fórum romano à noite


Havia, ainda, outros equipamentos urbanos, como os teatros, descobertos e cobertos, para diferentes tipos de espetáculos, palestras ou treinamento e exercícios. Os anfiteatros foram uma criação romana. Os jogos de gladiadores, disputados, na sua origem, no fórum e depois em construções provisórias de madeira, levaram posteriormente à criação de um edifício ovalado, destinado a abrigar milhares de espectadores das disputas entre lutadores. Sua forma deriva da necessidade de permitir que o público possa assistir à luta de qualquer lugar, daí o nome que teve de início: spectacula, "local de onde se pode ver". Os eruditos latinos transpuseram esse nome latino popular para o grego e o chamaram "anfiteatro", "local de onde se pode ver dos dois lados".

Alguns estudos recentes indicam que os jogos de gladiadores e os anfiteatros eram essenciais para definir a própria identidade romana: os jogos de gladiadores representariam o lugar onde a civilização e o barbarismo se encontravam, e civilização, como o próprio nome já diz, significava para os romanos cidade. Segundo o historiador contemporâneo Thomas Wiedemann:

A arena era o lugar onde a civilização confrontava a natureza, na forma de feras que representavam um perigo para a humanidade, e onde a justiça social confrontava a má ação, na forma de criminosos, ali executados; e onde o império romano confrontava seus inimigos, na pessoa dos cativos prisioneiros de guerra, mortos ou forçados a combaterem entre si, até a morte.

Seguindo com Wiedemann, percebemos que daí, do espírito por detrás das lutas de gladiadores, decorre a multiplicação de arenas nas cidades fronteiriças do Império Romano, sua localização próxima ao limite físico que separa o recinto urbano amuralhado do ager, e também sua presença no mundo de fala grega, como sinal de identidade romana. Uma das características marcantes dos jogos de gladiadores era a onipresença da morte e a cidade romana, como vimos, era a morada dos vivos, por oposição a morada dos mortos, o que aconselhava a construção do anfiteatro no limite do perímetro urbano, de modo que os mortos fossem logo evacuados para fora dos muros. Nem todos concordariam com essas interpretações do significado da cidade romana pois, afinal, havia uma grande variedade de cidades romanas, muitas delas sem anfiteatros ou lutas de gladiadores, por exemplo.

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. p. 115-118.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A sociedade medieval e a vida cavalheiresca

A sociedade era constituída de homens livres, servos e escravos, Entre os livres se incluíam nobres, clérigos, soldados profissionais, mercadores, artesãos e alguns camponeses. Os servos cultivavam um pedaço de terra da propriedade de um senhor, que lhes dava um arrendamento vitalício e proteção militar. Podia ser expulso à vontade do dono e, ao morrer, a terra só passaria aos filhos com o consentimento do senhor. A pessoa que doava o feudo era um senhor ou suserano, e quem recebia era um vassalo, quer fosse cavaleiro, duque ou conde.

Detalhe do vitral da Catedral Notre-Dame de Chartres: um ferreiro a aplicar a ferradura num cavalo.


Geralmente o rei era o mais importante dos suseranos. Logo abaixo dele estavam os grandes nobres, duques e condes, que podiam dividir e conceder feudos a nobres inferiores, chamados viscondes e barões, que lhes ficavam devendo vassalagem. Alguns servos denominavam-se vilões: eram pequenos fazendeiros que haviam dado suas terras a um vizinho poderoso. Os vilões não estavam ligados ao solo, enquanto que os servos estavam presos a ele e eram vendidos juntamente com a terra a que se ligavam. Os pastores e lavradores eram sempre extremamente pobres. Viviam em míseras cabanas, alugavam-se aos vilões ricos ou faziam trabalhos extraordinários para o senhor feudal.

Fevereiro. As mui ricas horas do Duque de Berry, 1412-1416, Irmãos Limbourg.


Vilões e servos estavam presos a numerosas obrigações. Pagavam anualmente vários impostos em dinheiro ou em espécie: a) a capitação, imposto cobrado por pessoa; b) o censo, pago somente por vilões e homens livres; c) a talha, percentagem sobre o que se produzia nas terras dos vilões e dos servos; d) as banalidades, retribuição paga pelo uso do moinho da vila, tonéis de vinho, forno de pão, etc.

Uma obrigação importante era a corvée. Esta obrigação recaía somente em um homem de cada família e era uma herança de economia mais antiga, na qual as tarefas como abrir estradas e canais, drenar pântanos, eram realizadas pelos camponeses como uma obrigação para com a comunidade ou o rei. Alguns senhores exigiam três dias por semana na maior parte do ano e quatro ou cinco dias por semana na época de aração ou colheita.

Além das taxas menores e um sistema de multas, o servo era ainda obrigado a hospedar gratuitamente o seu senhor. As obrigações eram tão pesadas que dois terços do que o servo produzia não lhe pertenciam. Sua vida era dura, as condições higiênicas péssimas e a alimentação pobre e grosseira. Tinha seus momentos de humor rude e pesado, mas no campo e em casa era homem de poucas palavras e espírito grotescamente solene. Junto ao seu casebre de madeira, de piso de terra batida, ficava a estrumeira que reunia os detritos humanos e dos animais. Em volta havia alguns instrumentos agrícolas e de indústria doméstica.

Servos medievais trabalhando na colheita. Iluminura do Espelho das virgens (século XIII), destinado às freiras noviças.


Não é de admirar que, no anedotário da época, se contasse que o diabo havia excluído os servos por não lhes aguentar o cheiro. Supersticioso, era contudo realista. Conhecia os caprichos impiedosos da natureza e sabia que uma estação seca podia causar-lhe a morte pela fome. As epidemias e a fome foram-lhe sempre companheiras, como haviam sido de seus ancestrais.

A cavalaria. Uma vez que, na maioria dos casos, os invasores bárbaros apareciam montados, exigia-se na Europa defensores que pudessem dispor de cavalos. A cavalaria tornou-se consequentemente mais importante do que a infantaria. Mas a cavalaria não era apenas uma organização militar - era uma instituição.

Geralmente, o cavaleiro era uma pessoa de origem aristocrática. Os jovens que aspiravam à cavalaria submetiam-se a uma longa e árdua disciplina. Pertencentes por nascimento a uma classe belicosa, recebiam educação essencialmente militar. Aos 7 ou 8 anos o futuro cavaleiro servia como pajém, aprendendo nos castelos as boas maneiras. Aos 12 ou 14 anos passava a escudeiro, a serviço de um senhor, carregando-lhe o escudo, servindo-o à mesa e aprendendo por imitação e experiência a lidar com as armas de guerra. Quando terminava sua aprendizagem ou praticava um ato extraordinário de bravura, era recebido na ordem da cavalaria com um ritual solene. Nas vésperas da cerimônia, jejuava e tomava um banho como símbolo de purificação. Passava a noite na igreja, em prece, e no dia seguinte, depois de ouvir missa e comungar, logo após um sermão sobre seus deveres morais, sociais, religiosos e militares, era armado cavaleiro. O título era concedido pelo senhor, que lhe dava três pequenas pancadas no ombro ou na cabeça com a espada, e às vezes um soco, como símbolo da última afronta que podia aceitar sem desagravo. O novo cavaleiro recebia uma lança, um capacete e um cavalo, distribuía presentes e dava uma festa aos amigos.

Um cavaleiro de Prato (Toscana). Miniatura do século XV, Convenevole da Prato (Carmina regia).


Teoricamente o cavaleiro tinha que ser um herói e um santo. A Igreja, para dominar-lhe o ânimo selvagem, cercou a instituição com votos religiosos. O cavaleiro comprometia-se a falar sempre a verdade, a defender a Igreja e a perseguir os infiéis.

A cavalaria elevou consideravelmente a posição da mulher. Nos romances medievais o cavaleiro está sempre comprometido ao devoir ou serviço da senhora que lhe deu suas cores para usar.

As normas cavalheirescas expressaram, assim, uma aspiração, um ideal, e, se bem que não tenham na prática abolido os abusos dos poderosos e as violências, exerceram sensível influência benéfica sobre os costumes feudais.

A terra e as classes rurais. O senhor feudal podia possuir mais de um feudo. Em troca dos serviços dos servos, dava-lhes terras de arrendamento vitalício. Exercia poderes judiciais e militares sobre seu domínio. Além da administração do feudo, suas preocupações principais eram a caça e ocasionalmente a guerra. Hospedava frequentemente a trocava prodigamente presentes com seus hóspedes.

O interior da residência senhorial era escuro e fechado. Até os fins do século XI os castelos feudais eram de madeira. Posteriormente, pesadas construções de pedra substituíram as antigas habitações, mas não apresentavam muito conforto. As janelas eram pequenas e poucas; a luz artificial era fornecida por candeeiros e tochas. Escadas sinuosas ligavam os andares, em número de três. No segundo pavimento ficava o salão principal que servia de corte de justiça, sala de jantar e quarto de dormir para a maior parte da família. O soalho de pedra era coberto por esteiras de junco ou palha.

As guerras constantes em que se envolviam os nobres por motivos fúteis ou interesses inconfessáveis, provocaram tanta violência, que a Igreja interveio com a Paz de Deus (1041), proibindo, sob pena de excomunhão, a luta em certos dias da semana, geralmente de quinta feira a segunda feira seguinte.

Walther von Klingen (detalhe). Codex Manesse, ca.1305-1315.
 

Com a 1ª Cruzada os nobres adotaram a prática islamítica de fazerem suas roupas, estandartes e armaduras com desenhos heráldicos, sendo interessante notar que no século XII estes emblemas heráldicos foram usados também por abadias, cidades e nações.

SOUTO MAIOR, Armando. História geral. São Paulo: Nacional, 1979. p. 241-244.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

"Admoestações de um sábio egípcio": uma revolta social no Egito antigo?

Papiro Leiden

* Natureza e data do texto: 

O Papiro Leiden 344 parece ter sido redigido durante a XIIª dinastia na sua forma original (o texto que temos é uma cópia tardia, da XIXª dinastia). Contém uma composição literária bastante longa - da qual reproduzimos somente pequenos excertos -, conhecida como "Admoestações de um sábio egípcio" ou "Admoestações de Ipuwer". A. Gardiner e outros autores acreditam que seja o reflexo de fatos reais acontecidos durante o Primeiro Período Intermediário (2134-1040 a.C.), mas recentemente S. Luria, M. Lichtheim e outros têm defendido a opinião de que se trata de texto de pura ficção.

* Texto:

Os porteiros dizem: "- Vamos saquear!"...O aguadeiro recusa-se a carregar a sua carga... os que capturam pássaros formaram-se em linha de combate. [... os habitantes] do Delta usam escudos. ... Um homem vê seu filho como inimigo. ...O homem virtuoso anda de luto devido ao que aconteceu no país... as tribos do deserto tornaram-se egípcias por toda parte.

[...]

Em verdade, os saqueadores [estão] por toda parte, e o servidor leva o que acha.

Em verdade, o Nilo inunda, mas ninguém toma o arado. Todos dizem: "- Não sabemos o que vai acontecer pelo país."

[...]

Em verdade, homens pobres se tornaram donos da riqueza, e aquele que não podia fazer sandálias para si é agora um possuidor de fortuna.

[...]

Em verdade, os nobres estão angustiados, enquanto o homem pobre está cheio de alegria. Cada cidade diz: "- Acabemos com os poderosos entre nós!"

[...]

Em verdade, escritórios públicos são abertos e seus inventários retirados; o servo tornou-se um dono de servos.

Em verdade, [escribas] são mortos e seus escritos retirados. Ai de mim por causa da miséria desta época!

Em verdade, os escritos dos escribas do cadastro são destruídos, e o cereal do Egito é propriedade comum.

Em verdade, as leis do tribunal são jogadas fora, em verdade, homens as pisoteiam nos lugares públicos, e homens pobres as destroem nas ruas.

[...]

Vede, coisas foram feitas que há muito não aconteciam: o rei foi deposto pela turba.

[...]

Vede, aconteceu que o país foi privado da realeza por alguns homens sem lei.

[...]

Vede, o segredo das terras cujos limites eram desconhecidos é divulgado, e o Palácio Real é derrubado num momento.

[...]

* Observações:

O documento dá a entender que a revolta se restringiu ao Delta, ou foi aí mais intensa. Ao dizer que as tribos do deserto "se tornaram egípcias", o que se quer significar é que os estrangeiros arrogaram-se os privilégios dos naturais do país. Note-se que o povo se voltou em primeiro lugar, com muita lógica, contra os documentos que serviam de base à corvéia, ao imposto e ao controle da propriedade da terra.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. Trabalho compulsório na antiguidade. Rio de Janeiro: Graal, 2003. p. 88-90.

terça-feira, 23 de abril de 2013

As universidades medievais

A palavra universidade (do latim "universitas") significava, originariamente, corporação, associação, comunidade.

As universidades medievais foram, realmente, corporações intelectuais - de professores e alunos - destinadas ao ensino e à aprendizagem. Mais tarde veio a significar uma instituição educacional, constituída de uma escola de artes liberais (trivium e quadrivium) e de faculdades de ensino superior: artes, teologia, medicina e direito.


Encontro de doutores na Universidade de Paris. Manuscrito medieval. Artista desconhecido.


Estudos secundários (artes). Trivium: gramática, retórica e dialética (lógica). Quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música.  

O conteúdo das matérias era mais amplo do que pareciam indicar os seus nomes. Assim, por exemplo, a gramática incluía noções de latim e de literatura; a aritmética abrangia o estudo da teoria dos números; a geometria acrescentava noções de química e de física. O trivium estudava-se em 4 ou 5 anos e dava o título de "bacharel em artes", que não conferiam, porém, habilitação alguma. O quadrivium requeria mais 3 ou 4 anos de estudo, após os quais obtinha-se o título de "mestre em artes".

Estudos superiores. Para conseguir o título de doutor (em teologia, medicina ou direito), eram precisos ainda mais anos de estudo. "No fim da Idade Média tinha sido ampliado para 14 anos o curso que, em Paris, habilitava ao doutoramento em teologia; e o grau não podia ser conferido antes que o candidato tivesse, pelo menos, 35 anos de idade". Ambos os graus - mestre e doutor - eram títulos só de docência.

Os colégios. Para corrigir e disciplinar os turbulentos estudantes, organizavam-se os colégios: internatos anexos às Universidades, onde os alunos tinham de sujeitar-se a um duro regime de reclusão.

Com o tempo, os colégios tornaram-se centros autônomos, dentro da Universidade. Nasceu assim, por exemplo, a famosa Sorbonne (colégio fundado por Robert de Sorbon). Ainda hoje seguem este sistema (centros autônomos e independentes) as Universidades de Oxford e Cambridge.

Sistema de ensino. O método de ensino consistia na leitura de textos, feita pelo professor (daí o termo de "lente", professor). O mestre acrescentava comentários pessoais. Os alunos ouviam e tomavam notas. "Pouquíssimos estudantes medievais possuíam livros e raramente encontravam uma biblioteca onde pudessem tomá-los emprestados". As salas de aula eram, frequentemente, pouco favoráveis: úmidas, mal iluminadas e com acomodações precárias, sem conforto algum.

Difusão das Universidades. As Universidades começaram a difundir-se no século XII. A de Salerno é, talvez, a mais antiga (século X). A de Bolonha instalou-se em 1150. A de Paris, em fins do século XII. Vêm a seguir, em ordem cronológica, e entre as mais famosas: Oxford, Cambridge, Montpellier, Salamanca, Roma, Nápoles. Em Portugal, a Universidade foi fundada em 1290, no reinado de D. Dinis; e foi transferida, em 1307, de Lisboa para Coimbra. Na Alemanha, as universidades só apareceram em fins do século XIV (Praga, Viena, Heidelberg, Colônia).

O estabelecimento de universidades generalizou-se rapidamente na Europa. As cidades estimularam a fundação desses centros de cultura; Papas e reis concederam-lhes imunidades e privilégios. No fim da Idade Média, tinham sido fundadas, na Europa Ocidental, umas 80 universidades.

BECKER, Idel. Pequena História da Civilização Ocidental. São Paulo: Nacional, 1974. p. 290-292.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A difusão do comércio de escravos: dos mercados de escravos do Oriente Médio ao tráfico Atlântico

O comércio de escravos (Escravos na Costa Oeste da África), François-Auguste Biard

A escravidão é cruel. [...] a posse de seres humanos por outros seres humanos está entre as piores práticas para deteriorar a humanidade. Porém, grande parte do que se chama de civilização foi construída sobre a escravidão. Nas culturas antigas, inclusive os sumérios, babilônios, a antiga Grécia e Roma, a escravidão era uma base econômica e geralmente considerada um modo de vida razoavelmente tolerável pelos menos privilegiados, que preferiam a escravidão a morrer de fome.

Os árabes tinham poucos problemas com a escravidão, fazendo deles os clientes ideais para os vikings, que vendiam escravos. Grande parte do litoral da Suécia fica no mar Báltico, de frente para o leste; então, os vikings dessa parte da Escandinávia geralmente navegavam para o leste em vez de irem para o oeste e para o sul, como faziam os vikings noruegueses e dinamarqueses. Conforme esses aventureiros nórdicos da Suécia exploravam pontos nas atuais Letônia, Lituânia e Estônia, eles começaram a navegar mais para o leste, atravessando pequenas baías e rios até chegarem à Rússia. Nas florestas do norte da Rússia, eles encontraram uma fonte de riqueza: um povo tribal, que foi capturado para ser vendido como escravo.

Os vikings não tinham dificuldade para chegar aos mercados de escravos do Oriente Médio pelo mar. Eles simplesmente transportavam sua carga através de um rio. O Dniepre corre pelo atual oeste da Rússia, passando pela Ucrânia e pela Bielorrúsia em seu caminho até o Mar Negro. A partir dali, eles podiam navegar até Constantinopla. Mas a leste, o rio Volga segue na direção sul até o Mar Cáspio, que faz fronteira com o atual Irã. A partir do Mar Cáspio, os vikings podiam chegar aos lucrativos mercados de escravos de Bagdá. Quando os missionários cristãos se aventuraram pela primeira vez na Escandinávia, os nórdicos capturaram e venderam alguns deles.

Os árabes já lidavam com escravos havia muito tempo e tinham outras fontes além dos comerciantes vikings para seres humanos prisioneiros. Desde a conquista de grande parte do norte da África, nos séculos VI e VII, os árabes levavam escravos daquele continente.

As guerras africanas, assim como as guerras em grande parte do restante do mundo desde os tempos pré-históricos, geralmente envolviam uma tribo ou um vilarejo que capturava as pessoas de outra tribo ou vilarejo. Conforme os comerciantes árabes penetraram no continente a partir do século VI, os africanos aprenderam que poderiam trocar seus inimigos prisioneiros por mercadorias valiosas com estes estrangeiros.

O comércio escravo árabe criou uma economia escrava na África, que ainda tinha força no final do século XV. Quando os navegadores portugueses começaram a aportar no oeste africano, encontraram vendedores de escravos locais dispostos a vender trabalhadores. Em 1482, os comerciantes portugueses construíram seu primeiro posto de troca de escravos em Gana. No início do século XVI, os portugueses enviavam prisioneiros para Portugal e as ilhas dos Açores, no Atlântico, onde os colonizadores portugueses precisavam de trabalhadores. Em alguns anos, havia um novo mercado para estes escravos nas Américas e os portugueses foram obrigados a fornecer para ele.


Navio negreiro, Rugendas

Em meados do século XVI, os colonizadores espanhóis das ilhas caribenhas haviam decidido que precisavam de uma nova fonte de trabalho. Os indígenas locais, que haviam sido escravizados, não tinham imunidade contra as doenças da Europa. Muitos estavam doentes ou fracos e muitos haviam morrido.

Os espanhóis começaram a importar escravos africanos, que tinham menos propensão de contrair varíola (a varíola - uma das doenças mais mortíferas entre os europeus e muito mais para os indígenas caribenhos - estava tão espalhada pela África que os escravos africanos acabaram desenvolvendo uma resistência natural). Os primeiros escravos foram comprados de navios portugueses por volta de 1530, iniciando um comércio que aumentou bastante ao longo dos séculos XVI e XVII e teve seu ápice no XVIII.

Também no século XVI, os espanhóis descobriram que o trabalho escravo fazia com que as colheitas, como a do açúcar, que podia ser cultivado em Hispaniola e outras ilhas caribenhas, fossem altamente rentáveis. Assim, eles compraram mais escravos. Por volta de 1700, quatro mil chegavam às ilhas governadas pela Espanha todos os anos.

Os ingleses, que estavam construindo seu primeiro estabelecimento permanente na América do Norte, em Jamestown, Virgínia, em 1607, não esperaram muito para começar a importar escravos. Os ingleses também tinham uma plantação bastante rentável e que exigia muitos trabalhadores: o tabaco. Em 1619, a Virgínia começou a usar escravos africanos nos campos de tabaco.

Portugal levou escravos para o Brasil em uma quantidade tão elevada que, por volta de 1800, metade da população deste país enorme tinha herança africana.

O tráfico de escravos era uma das maneiras mais certas de ficar rico com o comércio intercontinental, de 1500 a 1800. Os europeus se uniram aos comerciantes árabes e aos governantes africanos, que também podiam fazer fortuna com este negócio horrível. Os holandeses, ingleses, franceses e dinamarqueses se uniram aos portugueses, construindo estações de escravos na África.

"No Brasil, um pouco recuperados das agruras da viagem, os africanos eram exibidos nas lojas dos comerciantes de carne negra, amarrados uns aos outros. Às vezes eram tantos os negros que a mercadoria vazava para as ruas, onde ficava exposta à curiosidade dos compradores. Eram examinados como animais: apalpados, dedos enfiando-se pelas bocas, procurando os dentes para adivinhar a idade ou conferir se o vendedor não mentia. Os órgãos sexuais, objetos de cuidadosa inspeção, as mulheres tendo os seios manipulados e os genitais escancarados para a avaliação da sua qualidade como objeto sexual ou como "parideiras". Henry Koster repugna-se ante tamanha brutalidade: '[...] Deus de bondade! é a coisa mais horrível do mundo. Eles, porém, não parecem sentir mais que o desconforto da situação. Seu alimento é carne salgada, farinha de mandioca, feijão e às vezes banana da terra. A comida de cada dia é cozida no meio da rua, em enormes caldeirões. À noite, os escravos são conduzidos a um ou mais armazéns e o condutor fica de pé, contando-os à medida que eles passam. São trancados; e a porta é aberta de novo ao romper do dia seguinte'." (CHIAVENATO, Júlio José. O negro no Brasil, da senzala à guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 127-128.)

Em 1713, a Espanha concedeu à Inglaterra um monopólio para abastecer suas colônias americanas com 4800 escravos por ano durante 30 anos. Ninguém sabe quantas pessoas foram capturadas e vendidas, mas os números podem ter chegado a sete milhões somente no século XVIII. É difícil chegar a um número exato, parcialmente porque muitas pessoas morreram no transporte. As condições aterradoras a bordo dos navios negreiros incluíam colocar escravos acorrentados em ganchos com pouco mais de 90 centímetros de altura. Muitos morriam na sujeira, de doenças e de desespero e os marinheiros jogavam os corpos, sem qualquer cerimônia, no mar. Aqueles que sobreviviam eram vendidos em leilões.

HAUGEN, Peter. História do mundo para leigos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2011. p. 124-126.

sábado, 20 de abril de 2013

A preponderância holandesa no século XVII

A Holanda (denominação usualmente dada às Províncias Unidas dos Países Baixos), muito antes de se tornar independente, constituía uma das regiões mais florescentes da Europa.

The Y at Amsterdam, seen from the Mosselsteiger (mussel pier), Ludolf Bachuizen


Sua agricultura, apesar da escassez de terras, progredia. Suas indústrias desenvolviam-se, principalmente, na produção de tecidos de linho, estofos de lã, tapeçarias, construção naval, peixe salgado etc. O comércio, beneficiado com as vitórias sobre a Hansa Teutônica e pelos progressos da marinha, expandiu-se rapidamente, aproveitando-se das rotas fluviais (o Escalda, o Reno e o Mosa ligavam a região com a França e com o Sacro Império Romano-Germânico) e marítimas. Aspecto importante, na atividade mercantil, era sua intensidade com o porto de Lisboa, de onde transportavam produtos vindos do Brasil, da África e da Ásia. A propósito, a Hansa Teutônica foi uma associação de cidades alemãs; formada no século XIII sob a liderança de Lubeck, até o século XV dominou o comércio marítimo da Europa Setentrional; seu declínio deveu-se ao deslocamento do eixo econômico para o oceano Atlântico, consequência da Expansão Marítima e Comercial.

Com as rápidas transformações econômicas do século XVI, a sociedade assistiu ao fortalecimento de rica e ativa burguesia, sobretudo nos centros urbanos setentrionais dos Países Baixos, onde o calvinismo converteu-se na religião predominante.

Politicamente, os Países Baixos integravam-se ao Império Espanhol; cada uma das dezessete províncias dispunha de um conselho e de um governador (Estatúder) e enviava representantes aos Estados Gerais. As instituições comuns e a autonomia desfrutada, ao longo do governo de Carlos V, acabaram de forjar o sentimento nacional.

A ascensão de Felipe II ao trono espanhol marcou uma brusca mudança política em relação aos Países Baixos, ocorrendo crescentes choques contra a intolerância religiosa, manifestada pela introdução da Inquisição; a opressão fiscal, mediante a criação de novos impostos e elevação dos já existentes; regulamentação econômica promulgada em moldes mercantilistas e disposições administrativas suprimindo a autonomia existente.

A revolta conduziu à divisão dos Países Baixos: o Sul permaneceu unido à Espanha pela União de Arrás, enquanto os burgueses calvinistas do Norte formavam a União de Utrecht (1579), contando com a ajuda da Inglaterra de Elisabete I.

Apesar de a Espanha só haver reconhecido, diplomaticamente, a independência das Províncias Unidas mediante o Tratado de Vestfália (1648), estas já se haviam organizado em uma república federal, burguesa e calvinista.

"Os holandeses aproveitaram-se de várias circunstâncias favoráveis: sua localização em frente ao Mar do Norte; a ruína de Antuérpia; o declínio dos portos hanseáticos; e, sobretudo, a decadência de Portugal, que, então, estava anexado à Espanha." (ARONDEL, M.; LE GOFF, J. Du Moyen Âge aux Temps Moderns (1328-1715). Paris: Bordas, 1968. (Collection d'Histoire).

Ainda no decorrer da luta contra Felipe II, a Holanda procurou conquistar colônias aos luso-espanhóis )de 1580 a 1640 houve a União Ibérica), daí os ataques aos domínios ultramarinos daqueles países visando a efetuar pilhagens (foi, por exemplo, o caso das diversas incursões ao litoral brasileiro) e, principalmente, o estabelecimento definitivo. Na América, os holandeses se apoderaram da Guiana, da ilha de Curaçao, diversos pontos da América do Norte, tendo dominado o litoral norte e nordeste do Brasil durante algum tempo. Na África, estabeleceram-se na Colônia do Cabo e, temporariamente, em Angola, Benguela, São Tomé etc. No Oriente, criaram feitorias na Índia e dominaram Java, Ceilão, Málaca, Célebes, Molucas (as ilhas das especiarias), Nova Guiné, Sonda e Timor.

Para o processamento dessa intensa atividade, os holandeses construíram numerosas embarcações, formando a primeira frota naval do mundo.

Graças a tudo isso, Amsterdã, com suas feiras, sua Bolsa, seu banco, companhias de comércio (das Índias Ocidentais, das Índias Orientais), converteu-se no principal centro comercial e financeiro da Europa durante a primeira metade do século XVII.

Embora a ascensão hegemônica fosse rápida e se mantivesse na primeira metade do século XVII, o declínio se precipitou na segunda metade do mesmo século, quando guerras desastrosas, contra a Inglaterra (1652-1654 e 1655-1667) e contra a França (1672-1678), arruinaram o país e reduziram sua participação no comércio mundial.

Aos fatores externos somaram-se os de ordem interna, que apresentaram características distintas daquelas ocorridas nos Países Ibéricos. Com efeito, os holandeses foram incapazes de passar do capital comercial para o capital industrial: as excelentes possibilidades de lucro oferecidas pelas transações mercantis desviaram capitais de outras atividades, como a indústria, que estagnou e declinou; as perdas sofridas, externamente, acabaram dissipando a maior parte do capital de giro acumulado.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. História das sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2010. p. 39-42.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Posse legal ou pilhagem?

Durante séculos, as obras de arte antiga (egípcias, gregas, romanas) foram sendo gradualmente "transferidas" aos museus e acervos particulares europeus e, a partir da Segunda Guerra Mundial, norte-americanos. Resultado de pilhagem, dominação ou aquisição dita "legal", essas obras encontram-se hoje muito distantes dos países herdeiros das culturas que as produziram.

Em abril de 2000, a disputa, entre o Reino Unido e a Grécia, pelos Mármores de Elgin (frisos e estátuas que faziam parte do Partenon), que se encontram atualmente no British Museum (Londres), trouxe à tona uma velha questão: A quem cabe a posse das obras de arte antigas?

Um dos frisos do Partenon, atualmente no Museu Britânico, Londres


Há cerca de 150 anos os gregos lutam pela devolução dos Mármores de Elgin, sem, contudo, obter resultados. Um caso entre milhares de outros.

Pilhagem artística

Não há nada como entrar no British Museum, em Londres, ou no Louvre, em Paris, e mergulhar em antigas civilizações. Os acervos dessas instituições e de outras similares são tão impressionantes que o visitante, num momento de devaneio, pode realmente acreditar-se na Atenas do Século de Ouro ou no Egito dos faraós. O problema é que boa parte dessas obras é fruto de pilhagem.

Alguns dos países herdeiros dessas civilizações reclamam a volta de seus tesouros. Não são processos inéditos. A diferença é que, nas décadas anteriores, os reclamos no máximo provocaram o escárnio das autoridades das ex-metrópoles; hoje, há uma chance real de as obras serem devolvidas. O mundo experimentou mudanças que alteraram o conceito de comunidade internacional. Agora, nações são ouvidas independentemente do tamanho de seus exércitos.

É difícil precisar o número de itens roubados ou furtados nas coleções dos grandes museus. Segundo especialistas, são a minoria, mas, mesmo assim, chegam tranquilamente à casa dos milhares. Ocorre, porém, que mesmo o que foi adquirido legalmente poderia ser enquadrado na categoria de pilhagem. Afinal, era difícil para autoridades de alguns países deixar de negociar sob a mira dos canhões de Napoleão ou com a esquadra imperial britânica fundeada ao largo de seu litoral.

Para complicar ainda mais a questão, alguns tesouros já passaram a fazer parte do patrimônio da sociedade que deles se apossou. É o caso do diamante Koh-i-Noor, que pertenceu ao último marajá do Punjab, mas hoje está encravado na coroa britânica. Num certo sentido, a própria Londres não seria Londres sem o British Museum e tudo o que ele contém.

O fato é que, como princípio geral, as obras devem ser restituídas, ao menos as que foram obtidas ilegalmente até para os padrões da época. Isso não vai devolver a quem de direito tudo o que se perdeu com as guerras e o colonialismo, mas contribui para tirar do reino da pura abstração a ideia de comunidade internacional.

Folha de S. Paulo. São Paulo, 8 de abril de 2000. Opinião. p. 1-2. Citado In: NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 150.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

A origem do milho [Relato Kaingang]

๏๔ Mito dos Kaingang do Paraná ๔๏
๔๏



Nossos antepassados alimentavam-se de frutas e mel. Quando estes faltavam, sofriam de fome. Um velho de cabelos brancos, de nome Nór, ficou com dó deles.

Um dia disse a seus filhos e genros que com cacetes fizessem uma roçada nos taquarais e a queimassem. Feito isso, disse aos filhos que o conduzissem ao meio do terreno roçado.

Ali se sentou e disse aos filhos e genros:

- Tragam cipós grossos.

Quando trouxeram, disse-lhes o velho:

- Agora vocês amarrem os cipós no meu pescoço e arrastem-me pela roça em todas as direções. Quando estiver morto, enterrem-me no centro dela e vão para o mato durante três luas. Quando voltarem, passado esse tempo, acharão a roça coberta de frutos, que, plantados todos os anos, livrarão vocês da fome.

Eles principiaram a chorar, dizendo que tal não fariam. Mas o velho disse:

- O que ordeno é para o bem de vocês. Se não fizerem o que mando, viverão sofrendo e muitos morrerão de fome. E, além disso, já estou velho e cansado de viver.

Então, com muito choro e gritos, fizeram o que o velho lhes mandara e foram para o mato comer frutas.

Passadas as três luas, voltaram e encontraram a roça coberta de uma planta com espigas, que é o milho, além do feijão grande e da moranga. Quando a roça ficou madura, chamaram todos os parentes e repartiram com eles as sementes.

É por isso que temos o costume de plantar nossas roças e depois comer frutas e caçar por três ou quatro luas.

O milho é nosso, aqui da nossa terra. Não foram os brancos que o trouxeram da terra deles. Demos ao milho o nome de nór, em lembrança do velho que tinha esse nome e, com seu sacrifício, o produziu.

GUARANI, Emerson; PREZIA, Benedito. A criação do mundo e outras belas histórias indígenas. São Paulo: Formato Editorial, 2011. p. 35.

terça-feira, 16 de abril de 2013

A Macedônia e o Helenismo

Mosaico retratando Alexandre Magno, ca. 100 a.C., Pompeia. Artistas desconhecidos

O novo mundo no Mediterrâneo e no Oriente Próximo foi em grande parte definido pelos gregos. Paradoxalmente, isso aconteceu durante a decadência das cidades-Estado. Quando elas se tornaram mais frágeis e menos capazes de resistir a interferências externas do desastre da Guerra do Peloponeso, uma nova força começou a surgir no limite norte da Hélade: o Reino da Macedônia. Alguns indivíduos - na maioria macedônios - alegavam que este reino era um Estado grego e que fazia parte do mundo grego. Os macedônios falavam grego e frequentavam os festivais gregos; seus reis reivindicavam descender de famílias gregas - nada menos do que de Aquiles, o grande herói aqueu da Ilíada. Mas muitos gregos discordavam. Achavam que os macedônios eram um grupo bárbaro pouco civilizado e certamente não teriam a mesma condição dos povos cultos das cidades do Egeu e da Sicília.


Vênus de Milo

Sem dúvida a Macedônia era um lugar mais tosco e rude do que, digamos, Atenas ou Corinto, e os seus reis precisavam controlar uma aristocracia de chefes montanheses não muito impressionados por Sócrates. Contudo, a Macedônia mudou o curso da História grega graças à coincidência de alguns fatos favoráveis. Um deles foi o surgimento ali, em 359 a.C., de um príncipe capaz e ambicioso - ambicioso, entre outras coisas, de que a Macedônia fosse reconhecida como grega - Filipe II, regente do reino. As circunstâncias foram-lhe muito favoráveis: os Estados gregos estavam desgastados pelas suas longas lutas e a Pérsia sofrera uma série de revoltas que a enfraquecera. A Macedônia era rica em ouro, e portanto podia financiar um exército forte e efetivo, cuja eficácia se deveu muito aos esforços pessoais de Filipe. Na juventude, em Tebas, ele estudara os métodos militares gregos. Decidiu que a resposta à tática hoplita seria uma nova formação: a falange de dez fileiras de infantaria armadas com lanças, duas vezes mais longas do que as espadas comuns. Os homens que as carregavam ficavam bem mais distantes do que os hoplitas, de modo que as lanças da retaguarda se projetavam entre as das primeiras fileiras. O resultado era uma disposição de pontas em forma de ouriço, uma arma formidável. Para apoiar a retaguarda havia uma cavalaria com armaduras, cercada por uma fileira de armas pesadas, como catapultas.


Alexandre na tumba de Ciro, o Grande, Pierre-Henri de Valenciennes

* Alexandre, o Grande. O exército da Macedônia era tão eficiente que sob o reinado de Filipe e de seu filho, acabou de fato com a independência de muitas cidades da Grécia Continental e com um período da História humana, a era da pólis. O ano de 335 a.C., quando Tebas foi arrasada e os seus habitantes foram escravizados como punição pela rebeldia, serve de marco. Houve poucas revoltas posteriores, mas a grande era da Grécia clássica terminara. Isto pode não bastar para garantir aos reis da Macedônia um lugar na História, mas mudanças ainda mais espetaculares aconteceriam no reinado do filho de Filipe, Alexandre, um dos poucos homens na História que tradicionalmente é chamado de "o Grande". Ele parecia tão fascinante aos seus sucessores que as lendas em torno do seu nome fizeram com que ele fosse idolatrado por milhares de anos. Embora primordialmente e acima de tudo um soldado e um conquistador, ele foi muito mais. [...] é claro que ele foi uma força decisiva, não apenas na Grécia, como na História mundial a partir de 334 a.C., quando atravessou a Ásia para atacar os persas, chefiando um exército constituído de muitos Estados gregos, até 323 a.C., quando morreu na Babilônia (talvez de tifo), com apenas 33 anos.

"Alexandre - diz Toynbee - viveu o bastante para superar a estreita concepção de uma ascendência helênica sobre os não-helenos, em favor do ideal maior da fraternidade humana. Em seu contato com os persas, reconheceu e admitiu todas as virtudes que lhes permitiram governar uma grande parte do mundo por mais de  duzentos anos, e passou a sonhar com um mundo governado em conjunto por persas e helenos. Esse idealista precoce, porém, era capaz de matar amigos e companheiros, em ataques de fúria alcoólica, tal como o herói homérico que o lado adolescente de sua natureza aspirava a ser. E sua intemperança habitual foi, certamente, a causa de sua morte súbita e prematura, em Babilônia, em 323 a.C. Tivera tempo para destroçar um grande império, mas apenas começava a por em prática os planos de reconstrução que lhe amadureciam no espírito".

Alexandre era um grego apaixonado. Reverenciava a memória de Aquiles, seu suposto antepassado, e carregava nas suas campanhas um exemplar precioso de Homero. Seu tutor fora Aristóteles. Ele era um soldado valente - e às vezes afoito -, bem como um general astuto e um grande líder que uma vez feitas suas conquistas, comportava-se com simpatia para com os povos cujos governantes derrubara; também era violento: certa vez, bêbado, parece ter matado um amigo numa briga. Pode ter concordado com o assassinato do próprio pai.


“Alexandre considerava-se enviado pelos deuses para ser um governante geral e pacificador do mundo. Usando as forças das armas quando não conseguia unir os homens pela luz e pela razão, canalizou todos os recursos para um único e mesmo fim, misturando vidas, maneiras, casamentos e costumes dos homens, como se estivessem numa taça de amor”, afirma o historiador grego Plutarco.

Apesar dos seus defeitos, eles não impediram um assombroso registro do seu sucesso. Alexandre derrotou os persas na Ásia Menor na Batalha de Issus, e depois marchou através de toda a extensão deste Império, primeiro rumo ao sul, através da Síria até o Egito, e depois de volta ao norte e a leste, rumo à Mesopotâmia, perseguindo o rei Dario III, que morreu ainda em combate; foi o fim do Império Aquemênida. Alexandre continuou cruzando o Irã, o Afeganistão e o Rio Oxus, e seguiu adiante, até Samarcanda. Fundou uma cidade no Rio Jaxartes. Depois voltou para o sul novamente, para invadir a Índia. Duzentos quilômetros mais ou menos além do Indo, em pleno Punjab, os seus generais, exaustos, fizeram com que ele voltasse. Foi uma terrível marcha de volta pelo Indo, ao longo da costa norte do Golfo Pérsico, até alcançar a Babilônia, onde Alexandre morreu.

"Com suas grandes vitórias - escreve o mestre inglês Petrie -, Alexandre revela-se um consumado mestre de tática; e a organização que trazia possíveis tais vitórias prova seu domínio da estratégia. Com respeito aos seus dotes de estadista é menos fácil julgá-lo, pois na verdade faltou-lhe tempo para demonstrá-los. Era um grande conquistador, mas talvez não acertasse a consolidar suas conquistas. Todavia, sua obra no Egito nos dá um exemplo admirável do que poderia ter realizado em outras partes.

Seja como for, corresponde-lhe o mérito de ter aberto para o Ocidente as portas do Oriente e de ter franqueado o caminho ao incremento da civilização grega. E embora a unidade do seu império ruísse num instante, as cidades que fundou perduraram como sentinelas avançadas do helenismo, mantendo vivas as influências gregas e a língua grega até os confins do mundo".

Sua curta vida foi muito mais do que de simples conquistas. O seu "império" logo desmoronou e deixou de ter um único centro de governo, mas ele espalhou a influência helênica a lugares jamais alcançados. Alexandre fundou muitas cidades (muitas delas com o seu nome; ainda há várias Alexandrias e outros locais com nomes que são mais ou menos "disfarces" do seu) e mesclou gregos e asiáticos no seu exército para que aprendessem uns com os outros e se tornassem uma força mais cosmopolita. Recrutou jovens persas nobres e certa vez presidiu a um casamento coletivo de nove mil soldados seus com mulheres orientais. Manteve nos postos os antigos funcionários do rei persa, para que administrassem as terras que conquistara. Chegou a adotar roupas persas, o que não agradou muito aos seus companheiros gregos, que tampouco apreciaram quando ele fez com que visitantes se ajoelhassem diante dele, como faziam os reis persas.

"Sua concepção da 'homónoia' ou unidade fundamental da raça humana - diz o erudito humanista Alfonso Reyes -, a qual quis agrupar num Estado universal, é uma concepção de imensa transcendência. Supera a visão política do seu mestre Aristóteles. Seduz os filósofos estóicos. Prepara o Cristianismo".

Derrubar o mais poderoso império da época e encerrar a era das cidades gregas (tanto na Ásia quanto na Europa) foram feitos que modificaram o mundo, embora o seu impacto total não fosse óbvio de imediato. Muitos resultados positivos só apareceriam depois da morte de Alexandre. Então, tanto nas terras gregas quanto nas não gregas, seriam sentidos os efeitos das ideias e dos padrões gregos que ele espalhou tão amplamente. É por isso que as palavras "helenismo" e "helenístico" foram cunhadas e aplicadas tanto à era que se seguiu à morte de Alexandre quanto à área coberta formalmente pelo seu império (grosso modo, a região entre o Adriático e o Egito, a oeste, e as montanhas do Afeganistão, a leste). O império em si pouco durou; Alexandre não deixou herdeiros que pudessem assumi-lo e os seus generais começaram a disputar seu espólio.


“Historiadores modernos – comenta Dennis Wepman - não negam que Alexandre foi frequentemente cruel ou que conduziu mais por sonho de glória pessoal do que por elevados ideais de fraternidade ou de paz mundial. A morte e a destruição que acompanhavam suas marchas tornam qualquer outra conclusão ridícula. Mas é pelos resultados da vida de um homem que a História deve julgá-lo. E é como uma força propulsora do progresso e do pensamento humanos que Alexandre conserva o título de ‘o Grande’”.

Pintura helenística de um túmulo trácio de Kazanlak representando noivos. Próximo da antiga cidade de Seuthopolis, século IV A.C. Artistas desconhecidos

* Os sucessores de Alexandre: o mundo helenístico. Demorou quarenta anos mais ou menos para que as terras do antigo império se estabeleceram num novo padrão, como um grupo de reinos, cada qual governado por um dos homens de Alexandre ou por seus descendentes. Às vezes eles são citados como "sucessores" ou "diádocos". O mais rico destes reinos ficava no Egito, onde um general macedônio chamado Ptolomeu assumiu o controle. Conseguiu se apropriar do corpo de Alexandre e sepultou-o num esplêndido túmulo em Alexandria, o que lhe deu um prestígio especial e a primazia de ser o seu guardião. Ptolomeu fundou a última dinastia egípcia da Antiguidade, que governaria o Egito até 30 a.C. (quando morreu a última das ptolomaicas, a famosa Cleópatra), bem como a Palestina, Chipre e grande parte da Líbia. Contudo o Egito não foi o maior dos Estados Sucessores. Embora as conquistas indianas de Alexandre passassem para um rei indiano, a família de Seleuco (outro general macedônio) por certo tempo governou uma área que se estendia do Afeganistão ao Mediterrâneo; o reino selêucida não permaneceu tão grande assim. No início do século III a.C., um novo reino se estabeleceu em Pérgamo, na Ásia Menor, e na Báctria outro reino foi fundado por soldados gregos. Quanto à Macedônia, depois de ter sido invadida por bárbaros, passou para uma outra dinastia, e os antigos Estados gregos, organizados de tempos em tempos em ligas vagas, continuaram a se deteriorar [...]. O grego se tornou a língua oficial de todo o Oriente Próximo e a mais usada como língua cotidiana, principalmente em todas as novas cidades, fundadas em número considerável [...]. Mas eram muito diferentes das velhas cidades gregas do Egeu porque eram muito maiores. Alexandria, no Egito, Antioquia, na Síria, e a capital selêucida perto da Babilônia logo teriam aproximadamente duzentos mil habitantes. Também não eram autônomas, de forma alguma. As cidades selêucidas, por exemplo, eram governadas pelos administradores e mecanismos das províncias tomadas ao antigo Império Persa, um despotismo bárbaro aos olhos dos gregos do século V a.C. Começaram a surgir burocracias apoiadas nas antigas tradições do Egito e da Mesopotâmia e não nas da pólis. Os próprios governantes se atribuíam honras semidivinas, como os antigos reis persas. No Egito, os ptolomaicos reviveram o antigo culto aos faraós e Ptolomeu I adotou o título de Soter, que significa "Salvador".

Ainda assim as cidades pelo menos pareciam um pouco gregas. Suas construções obedeciam à tradição grega. Possuíam teatros, ginásios, centros para jogos e festivais muito semelhantes aos do passado. A tradição grega também aparecia no estilo artístico. Talvez a mais conhecida de todas as estátuas gregas, a de Afrodite, encontrada na Ilha de Milo, atualmente no Louvre, em Paris (a Vênus de Milo), é obra helenística. [...] Logo a literatura grega recebia contribuições de escritores das novas cidades, que encontravam público e patrocinadores num ambiente de duradoura e crescente prosperidade. As guerras de Alexandre haviam liberado um enorme butim em ouro e objetos preciosos, o que estimulou o desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo propiciando a cobrança de taxas para financiar os exércitos e as burocracias existentes. O mundo helenístico era um negócio em maior escala do que fora o antigo mundo grego, e um palco mais amplo para a cultura grega.

O mais claro indício de continuidade do passado surgiu num ramo da atividade intelectual: o estudo das ciências. A Alexandria egípcia foi especialmente famosa neste campo. Ali viveu Euclides, o homem que sistematizou a geometria e deu-lhe a forma que perdurou até o século XIX. Entre outros alexandrinos estava o primeiro homem a medir o tamanho da Terra, bem como o primeiro a usar o vapor para gerar energia. Arquimedes, famoso pela construção de máquinas de guerra na Sicília, assim como pelas suas descobertas teóricas na Física, provavelmente foi aluno de Euclides; e outro grego helenístico, Aristarco (este de Samos, e não de Alexandria), chegou até mesmo à ideia de que a Terra se movia em torno do Sol, e não o contrário (esta ideia não foi aceita pelos seus contemporâneos porque não se enquadrava na física aristotélica). Estes conhecimentos e hipóteses (e há muitas outras) representaram um grande avanço no conjunto de ferramentas humanas. Contudo, a ciência helenística foi refreada, porque não havia a tendência nem o aparato para testar experimentalmente algumas teorias, e porque havia uma tendência pelas ciências matemáticas mais do que pelas ciências aplicadas. [...] No entanto, o mundo helenístico teve sucesso ao produzir uma nova e importante filosofia ética: o Estoicismo, que, em termos gerais, ensinava que o homem deve ser virtuoso, quaisquer que sejam as consequências. Ser virtuoso, dizia esta filosofia, consistia, acima de tudo, em obedecer às leis naturais que governam o universo e todos os homens, e não apenas os gregos. Foi a primeira tentativa de estabelecer uma filosofia para toda a humanidade. Também produziu a primeira condenação da escravatura, um extraordinário avanço mental, jamais conseguido pelos filósofos da Grécia clássica, e que teria profunda influência durante séculos entre a elite de uma nova potência: Roma.

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 207-214.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Sonhos sonhos são

O sonho, Pablo Picasso

Negras nuvens
Mordes meu ombro em plena turbulência
Aeromoça nervosa pede calma
Aliso teus seios e toco
Exaltado coração
Então despes a luva para eu ler-te a mão
E não tens linha tua palma

Sei que é sonho
Incomodado estou, num corpo estranho
Com governantes da América Latina
Notando meu olhar ardente
Em longínqua direção
Julgam todos que avisto alguma salvação
Mas não, é a ti que vejo na colina

Qual esquina dobrei às cegas
E caí no Cairo, ou Lima, ou Calcutá
Que língua é essa em que despejo pragas
E a muralha ecoa

Em Lisboa
Faz algazarra a malta em meu castelo
Pálidos economistas pedem calma

Conduzo tua lisa mão
Por uma escada espiral
E no alto da torre exibo-te o varal 
Onde balança ao léu minh'alma

Em Macau, Maputo, Meca, Bogotá
Que sonho é esse de que não se sai
E em que se vai trocando as pernas
E se cai e se levanta noutro sonho

Sei que é sonho
Não porque da varanda atiro pérolas
E a legião de famintos se engafinha
Não porque voa nosso jato
Roçando catedrais
Mas porque na verdade não me queres mais
Aliás, nunca na vida foste minha

SONHOS SONHOS SÃO de Chico Buarque