"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 9 de março de 2013

Lagoa Santa: polo nevrálgico da pré-história americana


Sítio arqueológico da Pedra Pintada, estudado por Peter Lund em 1843.

A partir de 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, abriram-se as portas para a vinda de estrangeiros ao país. Comerciantes, artistas, imigrantes, além de naturalistas viajantes de várias partes do Velho Mundo, obtiveram autorizações para investigar e (re) descobrir o Brasil. Nesse cenário, pode-se ressaltar a vinda do naturalista dinamarquês Peter Wilhem Lund, que por mais de dez anos realizou pesquisas sobre fósseis de animais extintos nas cavernas de Lagoa Santa, em Minas Gerais, sendo hoje intitulado "pai da paleontologia brasileira". Lund também foi o primeiro a pesquisar restos humanos encontrados nos abrigos e nas cavernas da região, que levaram o naturalista à formulação de hipóteses ousadas para a época.

Poucos naturalistas, na segunda metade do século XIX, se aventuraram a vir ao Brasil sem passar por Lagoa Santa, aquele acanhado arraial transformado pelo "sábio dr. Lund" no polo nevrálgico da pré-história americana. Da mesma forma, as diversas pesquisas efetuadas posteriormente na região foram estimuladas pelas ideias arrojadas de Lund.

Em 1825, Lund desembarcou no Rio de Janeiro, à época capital do império português. Inicialmente, as motivações para a sua viagem estavam concentradas na coleta de informações sobre botânica e zoologia. [...] Logo em seguida, o interesse particular de Lund interagiu com o domínio público, já que foi encarregado de enviar coleções de animais e plantas para o Museu Real de seu país.

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O retorno de Lund à Europa lhe proporcionou o encontro com célebres naturalistas. Em sua passagem por Paris, Lund frequentou as preleções de Georges Cuvier sobre história natural, no College de France. As ideias desse paleontólogo o influenciaram de maneira decisiva. Grande parte de suas publicações sobre paleontologia é guiada pelos princípios fundamentais do catastrofismo, que tinha em Cuvier seu principal formulador. Essa teoria sustentava que o planeta, tal qual o conhecemos hoje, resultou de grandes cataclismos consecutivos. Postulava também que essas catástrofes teriam destruído a maior parte ou toda a vida animal e vegetal em vastas regiões do planeta. Segundo o pensamento de Cuvier, essas áreas destruídas seriam repovoadas por novos organismos de aparência mais moderna, resultado de episódios mais recentes da criação divina. [...]

Hospedado na Fazenda Porteirinha, de seu patrício, Lund foi levado por Claussem para conhecer uma caverna denominada Lapa Nova de Maquiné, na qual foram revolvidos ossos fósseis durante a extração de salitre. [...]

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A existência de ossadas fósseis nas cavernas do interior do Brasil já tinha sido revelada brevemente pelo padre Aires de Casal no início do século XIX, que comentou sobre ossos de animais gigantescos (possivelmente mastodontes) encontrados perto do rio das Contas, na Bahia. [...] Mas foram os naturalistas Karl Friedrich Phillip von Martius e Johann Baptist von Spix que descreveram os primeiros fósseis das cavernas de Minas Gerais, identificados na Lapa Grande, nos arredores de Formiga, atualmente Montes Claros. Foram revelados ali, durante as escavações para a retirada de salitre, ossos de anta, de quati e de preguiça-gigante.

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Na sua segunda passagem pela região de Curvelo, Lund visitou dezenove cavernas, mas somente duas forneceram restos fossilizados de animais. Para a satisfação do naturalista, a Lapa Nova de Maquiné proporcionou vários ingredientes para um ótimo início de pesquisas. Lund, na realidade, explorou pela primeira vez os extensos e amplos salões mais profundos de Maquiné. De forma comovida, descreveu a beleza natural da caverna, como também relatou a descoberta de seus primeiros fósseis e vestígios arqueológicos. [...]

[...] a partir de 1835 Lund fez dezenas de explorações nos maciços calcários da região, onde se situavam as cavernas. Essas explorações possibilitaram o reconhecimento de mais de oitocentos sítios com potencial paleontológico, nos quais foram coletados mais de 12 mil espécimes, entre fragmentos e ossos completos, pertencentes a 100 gêneros e 149 espécies extintos, dentre os quais mastodontes, paleolhamas, tigre-dentes-de-sabre, ursos de cara curta, gliptodontes (animais gigantescos aparentados com tatus) e, principalmente, preguiças-terrícolas [...].

A pesquisa do naturalista acompanhava o ritmo das estações climáticas do cerrado, ou seja, na estiagem do inverno fazia suas escavações nas cavernas e, nas chuvas de verão, limpava, catalogava e analisava a fauna escavada. Lund produziu cinco "Memórias" sobre a fauna das cavernas de Lagoa Santa, além de cartas sob forma de relatos científicos. Descreveu e nomeou diversas espécies de mamíferos. Nessa tarefa, no entanto, encontrou obstáculos, diante das dificuldades de acesso a revistas científicas atualizadas sobre anatomia comparada e a uma coleção de esqueletos de referência. [...] O número de espécies extintas determinadas por Lund ou por outros pesquisadores, baseados no material coletado em suas escavações, chega a 32, merecendo destaque a preguiça-gigante (Eremotherium laurillard), o temido tigre-dentes-de-sabre (Smilodon populator) e o cavalo americano (Hippindion principale). [...]

Após quase uma década de intensa investigação, Lund estava ciente de sua grande contribuição para o estudo da fauna vivente e da extinta, encontrada nas cavernas de Lagoa Santa, mas dois assuntos ainda o instigavam profundamente: as idades relativas dos fósseis animais e humanos e a possível convivência, ali, entre o homem e os grandes mamíferos extintos. [...]

Entre os dias 29 de agosto e 10 de setembro de 1843, aproveitando uma forte estiagem que ocasionou o esvaziamento da Lagoa do Sumidouro, Lund teve a oportunidade de revelar um verdadeiro baú de ossos. A gruta, localizada no sopé de um maciço calcário cinza-avermelhado que margeia parcialmente uma lagoa, fica quase toda submersa durante boa parte do ano, impossibilitando a exploração de suas câmaras mais internas. [...]

[...] No Sumidouro, Lund formulou, então, ideias que, na verdade, estavam sendo organizadas por Charles Lyell, na Inglaterra acerca da transformação lenta e contínua das formações geológicas. No entanto, no mesmo estudo, ainda fez uso do termo "mundo antedeluviano", quando descreveu os mamíferos encontrados na caverna. [...]

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[...] Lund percebeu dois aspectos de grande importância sobre a ocupação do continente americano: em primeiro lugar, que essa ocupação teria ocorrido muito antes do que se pensava à sua época, o que permitiu a convivência do homem com a megafauna; segundo, que os primeiros americanos tinham uma constituição biológica distinta daquela dos asiáticos e dos ameríndios que os sucederam no tempo. [...]

NEVES, Walter Alves; PILÔ, Luís Beethoven. O povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo; Paris: UNESCO, 2008. p. 97-117.

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