"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Rock, a trilha sonora da revolução

Pôster oficial do Festival de Woodstock

"Nosso país estava assassinando milhões de pessoas. Os números, na verdade, eram de 3 a 5 milhões. Isso era um fato muito grande para ser assimilado. Nós não sabíamos o que fazer a respeito." Foi assim que Mark Rudd, membro do grupo político radical Weather Underground descreveu a situação dos Estados Unidos no fim da década de 1960 em depoimento para um documentário sobre a organização em que militou.

O relato de Rudd é uma das mais aguçadas sínteses sobre o quadro de caos e desordem que se multiplicava pelas grandes cidades de seu país na época. Durante aqueles dias de intensa rebelião, a oposição à Guerra do Vietnã era o principal fator de mobilização que unificava as lutas contra o status quo em vários pontos do planeta. A palavra de ordem era destruir as velhas estruturas, e superar o sistema capitalista era a questão de fundo que tinha precedência sobre todas as outras. [...]

Foi em meio a esse cenário conturbado que o rock se tornou um poderoso instrumento de contestação cultural, social e política. Desde a metade da década de 1960, as bandas e artistas do gênero já vinham construindo uma trajetória paralela, porém repleta de imbricações, com os insurgentes nas ruas. Tudo começou quando nomes como Bob Dylan e os Beatles passaram a se envolver com a cultura psicodélica, baseada no consumo de drogas alucinógenas como o LSD e em experimentações artísticas radicais.

O ano que marca essa virada é 1966, quando Dylan lança o disco Blonde on blonde e os Beatles gravam Revolver. Esses dois álbuns, ao lado de Pet sounds, dos Beach Boys, definem os contornos do psicodelismo musical. Logo, artistas como Jimi Hendrix, The Byrds e Frank Zappa engrossariam as fileiras do experimentalismo, e o rock embalado por drogas alucinógenas tomou conta da Costa Oeste dos Estados Unidos, fazendo de São Francisco o centro da cultura hippie.

Esse movimento atingiu o ápice durante o chamado "verão do amor", em 1967, mas já no ano seguinte o psicodelismo começava a dar sinais de esgotamento. Diante do recrudescimento dos conflitos sociais e da mercantilização do estilo de vida hippie, em 1968 os principais protagonistas daquela cena estavam deixando para trás o experimentalismo e voltando às raízes do rock and roll no sul dos Estados Unidos, onde o estilo nascera uma década antes de gêneros musicais híbridos que circulavam entre as classes populares.

A realidade estava mandando recados insistentes para quem continuava vendo a vida com os olhos de caleidoscópio de Lucy in the sky with diamonds. Algumas das maiores cidades americanas incluindo a própria capital do país, arderam nas chamas dos conflitos raciais durante o "verão do amor". [...]

Em Detroit, após cinco dias de intensa revolta e intervenção federal, o saldo final contabilizava 43 pessoas mortas, quase todas negras, e um prejuízo estimado em US$ 500 milhões. Anos de brutalidade policial, miséria nos guetos, racismo e desespero estavam cobrando seu preço. Para fermentar ainda mais a indignação, o governo mandava tropas para o Vietnã na proporção de dez negros para cada branco. A resposta veio na forma de um som agressivo, direto e de confronto.

No fim de 1967 a Marcha sobre o Pentágono levou mais de 50 mil pessoas a Washington, no maior protesto realizado até então contra a Guerra do Vietnã. O evento, altamente midiático, foi imortalizado pelo livro Os degraus do Pentágono, do jornalista Norman Mailer; pelo curta-metragem A sexta face do Pentágono, do diretor Chris Marker; por um ritual de exorcismo conduzido pela anárquica banda nova-iorquina The Fugs; pelo cântico puxado pelo poeta beatnik Allen Ginsberg para fazer o Pentágono levitar e pela clássica foto de uma jovem pondo flores no fuzil de um soldado da Guarda Nacional.

Menos visível, mas igualmente significativa, foi a ascensão de um novo modelo de rebelde, personificado por Abbe Hoffman: saído dos campi universitários, com atitude e carisma de astro de rock. Alguém que aliava os prazeres da tríade: sexo, drogas e rock and roll a uma clara doutrina de ativismo social.

Essa renovação da militância política nos Estados Unidos era encabeçada pela chamada "Nova Esquerda", que, por meio do movimento Estudantes por uma Sociedade Democrática [...], organizava uma revolta que começara nas universidades, mas aos poucos rompia os muros dos campi e ganhava as ruas. A imprensa trazia diariamente imagens impactantes de execuções de inocentes e relatos detalhados sobre os custos da guerra no Vietnã. O recrutamento obrigatório indignava o cidadão comum que não queria ver seus filhos mandados para morrer num conflito injusto e sem sentido.

A guerra não demorou a entrar em pauta na música pop. Nem todos se referiam diretamente ao conflito no Sudeste Asiático, mas a experiência foi abordada em todas as suas etapas: desde o recrutamento, como em Draft morning, dos Byrds; passando pelo combate direto nas trincheiras, tema de Citadel, dos Rolling Stones; e Unknown soldier, dos Doors; até o inferno existencial posterior, retratado em canções como The war is over, de Phil Ochs, e I can't write left-handed, de Bil Whiters.

A guerra como reflexão filosófica ou política foi tema de artistas tão diferentes quando Tim Buckley, em No man can find the war, e Marvin Gaye, na obra-prima What's going on. [...]

Numa outra linha, dispensando as meias palavras em sua contundência, a música Fortunate son, do Creedence Clearwater Revival, desconstruía toda a lógica do discurso dos senhores da guerra, expondo os mecanismos de manipulação por trás da retórica da classe dirigente. [...]

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As cobranças de posicionamento eram implacáveis. Especialmente em relação a músicos de rock que aos olhos do público em geral e das próprias autoridades faziam a trilha sonora da contracultura. [...]

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Em 1968 o chamado das ruas reverberava alto demais para ser ignorado. Enquanto os Beatles começavam as gravações do "Álbum branco", Paris erguia as barricadas que quase derrubaram a Quinta República Francesa, e Praga vivia sua breve primavera de liberdade antes da chegada dos tanques russos. Rebeliões estudantis provocaram distúrbios em Berlim, Nova York, Rio de Janeiro, Varsóvia e Washington. E o assassinato de Martin Luther King deixava uma ferida aberta na comunidade negra.

Sempre o mais inquieto e antenado do grupo, John Lennon queria intervir. Ao batizar uma canção enérgica e pesada de Revolution, ele parecia elaborar um manual teórico para jovens combatentes da mesma forma que, em 1966, Tomorrow never knows havia aberto caminhos para iniciantes em LSD.

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A chamada "Nova Esquerda" era, sem dúvida, muito mais arejada do que os socialistas tradicionais e estava disposta a empunhar bandeiras que horrorizariam os marxistas da Escola de Frankfurt, mas essa flexibilidade não incluía escutar sermões de astros de rock milionários. [...]

A música folk sempre fora a forma mais reconhecida de protesto nas universidades. Era um movimento que atuava como uma espécie de linha auxiliar do Partido Comunista, e vários de seus expoentes, assim como professores e acadêmicos, haviam sido perseguidos pelo macarthismo na década de 1950. [...]

A banda que parecia mais se ajustar ao novo figurino revolucionário vinha do proletariado de Detroit. Conforme os discursos ficavam mais virulentos, o MC5 também subia o tom, queimando a bandeira americana e xingando a polícia no mesmo palco de onde emanava uma música suja, vigorosa, sempre em altíssimo volume. Nos confrontos violentos da Convenção do Partido Democrata em Chicago, em 1968, eram eles que estavam tocando até a polícia começar a bater nos manifestantes. [...]

O MC5 não escapou das retaliações que o governo americano armou contra os protagonistas da contracultura. John Sinclair foi preso e condenado a dez anos de cadeia por causa de dois cigarros de maconha, num julgamento claramente político, e a gravadora Elektra dispensou a banda por causa de suas atitudes ultrajantes. O grupo se separou em 1972, enquanto Richard Nixon se preparava para ser reeleito com votação avassaladora, numa demonstração inequívoca do quanto a população estava cansada de radicalismos.

Vários líderes, como Abbe Hoffman e os membros do Weather Underground caíram na clandestinidade, outros foram presos. Fred Hampton e George Jackson, militantes do grupo radical Panteras Negras, foram mortos pela polícia. O cerco de fechava.

Enquanto isso o rock se agigantava, movido a cifras milionárias. O assassinato de um jovem negro durante o show dos Rolling Stones no Festival de Altamont, em dezembro de 1969, sepultou o projeto utópico nascido nas comunas hippies de São Francisco. Shows ao ar livre passariam a ser organizados profissionalmente como um negócio, não mais como atividade comunitária. A contracultura parecia aniquilada, curiosamente no momento em que se tornava um fenômeno em escala planetária, afetando a vida de milhões de pessoas. Inclusive no Brasil, onde a ditadura militar passava por sua fase mais sombria.

Rodrigo Mehreb. Rock, a trilha sonora da revolução. In: Revista História Viva. Ano IX, nº 105. p. 61-66.

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