"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 30 de dezembro de 2012

Brasil: quando aqui era sem gente

Pedra Furada: ao pé deste deslumbrante bloco arenítico, que se ergue em meio à vastidão desolada da caatinga, no Piauí, foram encontrados os vestígios arqueológicos mais polêmicos da pré-história brasileira.

O chão que hoje é chamado de território nacional brasileiro é muito antigo, dos mais velhos do mundo. No sertão do Rio Grande do Norte, geólogos analisaram pedaços de rocha e concluíram que ela se formou há 3 bilhões e 400 milhões de anos - quando a crosta terrestre estava se solidificando!

[...] nem sempre existiram os continentes como a gente os conhece hoje. [...] o Brasil se encaixa no território africano atual, como se os dois fossem peças de um quebra-cabeças. E são mesmo! Essas peças - placas tectônicas [...] - estão em contínuo e lento movimento, em meio às águas dos oceanos, que às vezes as cobrem, e sobre o centro profundo da Terra, incandescente, que às vezes chega até nós com as lavas dos vulcões.

Pisamos na terra, cercados de água, sobre o fogo, envoltos em ar... E, volta e meia, tudo parece mudar: a terra treme, os mares avançam, agitados, os vulcões despejam seu caldo fervente, os furacões arrasam com sopro mortal. A natureza não é estática, nunca está pronta!

[...] Quando esses pedaços antiquíssimos de pedra vieram parar no nosso Nordeste? Faz tempo: há uns 80 ou 100 milhões de anos a África e a América do Sul [...] se separaram definitivamente, com o surgimento completo do Oceano Atlântico [...] entre elas. Separação demorada, como costumam ser as de quem foi totalmente ligado: há 250 milhões de anos tudo estava reunido num supercontinente chamado Pangea. Cem milhões de anos depois [...] o Pangea foi se desagregando, formando duas massas continentais. Uma delas era a Gonduana, que reunia a África, a Antártida, a Austrália, a Índia e a América do Sul. Lá estava, por exemplo, o imenso bloco de granito que, aqui, com a erosão do tempo, do vento, da maresia, gerou o Pão de Açúcar, símbolo do Rio de Janeiro! A outra massa de terra, que reunia as atuais América do Norte, Europa e Ásia, foi batizada como Laurásia pelos geólogos que estudam a crosta terrestre.

[...]

Continuamos em movimento: a Terra gira e os continentes andam. A América do Sul segue viagem rumo à Ásia, afastando-se da África 2 a 3 centímetros por ano... [...] caso esse deslocamento continue e a própria Ásia se mexa menos, um novo continente, reunindo a América do Sul e a Ásia, surgirá daqui a uns 30 milhões de anos. Com um promissor nome, sugerido pela jornalista Débora Lerrer na revista Super-interessante [...] de abril de 1999: AMÁSIA. Um futuro de amor e paz no planeta? Um retorno à grande unidade geológica que já tivemos? Uma denúncia natural da estupidez dos racismos, dos nacionalismos fanáticos, dos etnocentrismos?

A terra firme de hoje já foi mar. Já estivemos submersos, e novas inundações podem vir. A crosta terrestre continental, de superfície, já foi ou pode voltar a ser oceânica, isto é, assoalho do fundo das águas... Tudo é litosfera, calota rígida exterior da bolotinha sideral chamada Terra!

Pisando em chão seguro, desafogado, neste território que já teve 1/4 de sua superfície ocupada pelo mar, contente-se em recolher fósseis de peixes pelo interior do Brasil a dentro... Sinais do que fomos, em tempos imemoriais. Sinais históricos e arqueológicos preciosos, valioso patrimônio da nossa memória, que são desprezados pela desinformação ou apagados pela cobiça que tudo revolve e destrói. O Brasil ainda não descobriu adequadamente sua arqueologia, sua paleontologia, sua própria História... Mas é necessário!

Tempos imemoriais em que até as fendas "brasileiras" por onde saíam lavas vulcânicas começaram a se fechar: 10 milhões de anos atrás. [...]

[...] bichões hoje extintos andaram por nosso torrão, quando aqui não era Brasil, quando aqui era sem gente e nem era aqui. Quando aqui era Pangea, quando aqui era Gonduana. E enormes seres vivos, que chamamos genérica e erradamente de dinossauros, perambulavam pelo planeta.

Vida acontecida desde o período triássico, em que os dicinodontes, herbívoros atarracados, se espalhavam no mundo todo, e os rincossauros, répteis bicudos, assemelhados aos crocodilos, se adaptavam aos ambientes mais hostis. Período triássico no "Brasil" - Pangea dominado pelo maior predador: o terrível carnívoro prestosuchus chiniquensis, com seus 800 quilos distribuídos em 6 metros de comprimento! Que assustava até o "vovô" dos nossos dinossauros [...], o estauricossauro, bípede de dentes serrilhados e dois metros de comprimento por um e meio de altura.

Dinossauro propriamente dito - o termo foi criado em 1841 pelo paleontólogo inglês Richard Owen e significa "lagarto que mete medo" - só ocorre em larga escala no período jurássico, que coincide com o início da separação África-América do Sul! Há sinais fósseis de bichos ancestrais em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em Bauru e Araraquara, no interior de São Paulo, em Uberaba, Minas Gerais, na bacia do Araripe, no Ceará. [...] Vieram à tona com o rebaixamento das águas, a transmigração dos continentes, a navegação das terras. [...]

Espetáculo mesmo foi dado no chamado período cretáceo, quando o Brasil não era Brasil mas aqui já era quase aqui - concluía-se nosso divórcio da África. Cerca de vinte espécies de dinossauros - das mil conhecidas até agora, em todo o mundo - mandavam no pedaço. Faz tempo: foi de 145 a 65 milhões de anos atrás. Olha só o timão da pesada:

* Espinossauro, imenso lagarto: 15 metros de comprimento por 5 de altura.

* Abelissauro, primo do Tiranossauro: 11 metros de comprimento por 5 de altura.

* Titanossauro, parente do Brotonssauro: 18 metros de comprimento por 4 de altura.

* Deinonicossauro, da família do Velociráptores: 4 metros de comprimento por 2 de altura.

* Iguanodonte, gigante com pés de pássaro: 9 metros de comprimento por 3 de altura.

* Celurossauro, assemelhado ao avestruz: 2 metros de comprimento por 1 de altura.

Nos céus do Brasil que não era Brasil, os pterossauros, répteis voadores, assustariam os frágeis seres humanos [...]. Esses bichos alados de ossos ocos, que não eram nem dinossauros nem aves, podiam ter uma envergadura de 5 metros, com as asas abertas. Existiram vários tipos, e ganharam dos estudiosos nomes indígenas: tupuxuara, anhanguera e tapejara.

Nas praias límpidas do nosso litoral, repletas de uma infinidade de pequenos moluscos, mosassauros de 10 metros, amonóides com caracóis de 2 metros de diãmetros e os peixes-lagartos, os ictiossauros e os plesiossauros, com seus 5 metros, aterrorizariam banhistas, se a vida humana já tivesse surgido nesses tempos pré-históricos [...].

Foi em 1946 agora [...]. Em Uberaba, Minas Gerais. Ferroviários descansavam do duro trabalho de tocar o trem de ferro e o trem da vida jogando bocha. Um paleontólogo curioso pediu para examinar melhor a pelota de 15 centímetros de diâmetro e concluiu: era um ovo (gorado, empedrado) de titanossauro! Dali sairia um bichinho que, adulto, pesaria quatro vezes mais que um elefante. [...]

Os dinossauros sumiram da face da Terra há 65 milhões de anos. [...] Aquele mundo pode ter se perdido por causa de mudanças no nível do mar, intensa atividade de vulcões ou ondas terríveis de frio. Também não está descartada a hipótese do impacto bombástico de uma chuva de meteoritos sobre o planeta.

Mas os seres humanos, quando chegaram à América do Sul, há 50, 30 ou 13 mil anos, provavelmente, não encontraram também outros terríveis animais que sucederam os dinos: o tigre de dentes-de-sabre, o mastodonte (da família do elefante), o megatério (uma preguiça gigante), o taxodonte (primo do hipopótamo), a paleolhama , o gliptodonte (um tatu gigante, com cauda espinhenta) e a macrauquênia (um cavalo com tromba, parente do camelo). Esses bichões foram perdendo espaço de sobrevivência com a junção das Américas, há 3 milhões de anos, através do istmo do Panamá. Muitos carnívoros vindos da América do Norte disputavam território com os pesadões daqui. [...]

O clima também foi se alterando muito, os alimentos escasseando, e nessa hora ser pequeno e ágil conta bastante. O crânio de um enorme urso encontrado numa gruta do Ceará revela que hoje ele não viveria por lá: não aguentaria o calor. Dos tigres só restaram os dentes, espalhados por aí, do rio Parnaíba, no Piauí, ao Xuí. [...]

Há, no Brasil atual, sobreviventes daquela fauna pré-histórica. E que são até hoje encontrados com certa facilidade: os gambás, os sapos, as lebres. E os lagartos, lagartixas, insetos de todo tipo. As minhocas estão por dentro da terra há milênios, e as cobras, por cima, idem [...]. Sem contar o mar [...] onde a vida surgiu e onde estão guardados os segredos da sua perpetuação. Observar suas profundezas é voltar no tempo e se deparar com estranhas criaturas seculares, como os polvos e as tartarugas. Por que, ao se espantar diante delas, tantos seres humanos querem caça-las, destruí-las?

Mais perto de nós estão aqueles bichos que têm jeitinho de idosos, e são mesmo: os jacarés, os tatus e os jabutis. Eles resistiram aos ataques de enormes feras e às intempéries. Resistirão ao ser humano?

ALENCAR, Chico. BR-500: um guia para a redescoberta do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 35-45.


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