"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 8 de maio de 2012

Somos ou não somos racistas?


Eis a questão que desafia legisladores, intelectuais, cientistas e historiadores há mais de um século, em uma nação que é tão mestiça quanto desigual.
por Sílvia Capanema P. de Almeida



O jornalista e cientista social Ali Kamel publicou o livro Não somos racistas (Nova Fronteira). Trata-se, como o subtítulo indica, de "uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor". O livro defende a ideia de que compomos uma nação predominantemente mestiça e que o racismo existe como manifestação minoritária e não institucional, sendo a pobreza o principal problema do país. Pretende criticar as reivindicações do movimento negro e os projetos de adoção de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras.

Do outro lado do debate, há vozes que defendem a tese de que o elogio da mestiçagem brasileira tem caráter ideológico, tendendo a esconder o racismo existente no país e a exclusão do negro ao longo dos cinco séculos de formação do Brasil. Esse é o pensamento do antropólogo Kabengele Munanga em seu Rediscutindo a mestiçagem no Brasil (Autêntica, 2004) 

Para se situar nessa discussão, seria interessante compreender o contexto dos períodos anterior e posterior à abolição. O processo de abolição não pode ser resumido ao 13 de maio de 1888. Por trás da data histórica, o comportamento da população negra no país mostra a existência de uma realidade muito mais complexa. Por um lado, antes mesmo da abolição, ser negro já não significava mais exatamente ser escravo. Pesquisas recentes apontam que apenas 5% do total da população negra ou parda do país era escrava às vésperas da extinção da escravidão. O grande número de alforrias por reconhecimento, laços pessoais e familiares, compras, entre outros fatores, mostrava que já havia muitos negros e mestiços vivendo além da escravidão, principalmente no meio urbano. Além disso, as fugas e formações de quilombos, muitos dos quais apoiados pela população pró-abolição, também já contribuíam para uma relativização da identificação do negro como escravo nos últimos anos do império. Um sujeito de cor negra ou parda poderia ser escravo, mas também livre ou liberto, como indicam as categorias dos censos do período.


Por outro lado, a tão famosa Lei Áurea assinada pela princesa Isabel não significou a igualdade em termos de inclusão e cidadania para negros e ex-escravos, ainda que as diferenças não fossem registradas pela legislação, pelos códigos e regulamentos institucionais de maneira geral a partir dessa data. Para muitos negros, pardos e outros, o lugar social marcado inicialmente pela escravidão não seria modificado em pouco mais de um século e algumas gerações. Na ausência de qualquer programa de integração dessa população pobre e praticamente analfabeta, boa parte desse contingente de cidadãos e seus herdeiros permaneceu excluída dos bens materiais e culturais durante muitos anos. 

Depois do 13 de Maio, muitas famílias continuaram como mão-de-obra nas mesmas fazendas onde tinham sido escravas. Alguns indivíduos migraram para os grandes centros urbanos, em muitos casos reforçando o número de subempregados ou "desocupados", segundo a terminologia da época, e lotando os cortiços e favelas que se formavam nas cidades. Alguns outros adquiriram consciência da sua condição e associaram-se para denunciar a situação e defender seu lugar na sociedade, como no caso da Guarda Negra, espécie de milícia que procurava proteger a liberdade dos negros e a personalidade da princesa Isabel, e da imprensa de identidade negra, que denunciava o problema e funcionava como um espaço de sociabilidade para essa população. 

Posteriormente, já nos anos 30, a fundação da Frente Negra Brasileira (FNB) iria politizar a discussão, buscando um espaço para o negro na esfera política. Tudo isso indica que havia mais diversidade do que se acreditava na inserção do negro na sociedade brasileira do pós-abolição. Esse passado de escravidão iria marcar também o debate em torno da construção da nação e do Estado brasileiro. Já em meados do século XIX, intelectuais, legisladores e cientistas mostraram-se preocupados com o perfil e a composição da sociedade brasileira, e com os modelos e projetos possíveis para a construção do país.

Muitas das construções institucionais iniciadas com d. João VI e d. Pedro I foram incrementadas no Segundo Reinado. D. Pedro II era um monarca ilustrado e incentivador das artes e da ciência, tendo certa vez afirmado, parodiando o rei absolutista francês Luís XIV, "a ciência sou eu". Nesses governos, sobretudo após a independência, foram criados institutos de estudo e expandidas as universidades e academias, lugares onde se debatia sobre qual seria o projeto de sociedade possível e desejado no Brasil. Apesar da resistência de alguns setores, o fim da escravidão era tido como inexorável. 

Vários aspectos podem ser apontados como tendo contribuído para esse fim: as pressões internacionais, o fortalecimento do capitalismo industrial e a necessidade de mão-de-obra livre e consumidora, as idéias igualitárias oriundas do pensamento iluminista, a própria ação dos escravos, que manifestaram diferentes modos de resistir, por meio das fugas, dos quilombos e das revoltas durante todo o século XIX e em várias partes do mundo. A título de exemplo, a revolta de negros escravos que massacraram seus senhores tomando o poder na colônia francesa de São Domingos, hoje Haiti, ainda no início do século XIX, apavorava o imaginário dos grandes proprietários brasileiros. Definitivamente, as elites brasileiras não gostariam que o Haiti fosse aqui. Além disso, pode-se dizer que extinguir a escravidão era uma exigência do mundo dito civilizado e corresponder a essa demanda seria fundamental para colocar o Brasil no ritmo do progresso, de acordo com os conceitos da época.


As negociações entre os interesses de diferentes setores fizeram a abolição ser fruto de um processo gradual. Uma lei de extinção do tráfico foi assinada já em 1831, a partir de uma exigência inglesa. Porém, não chegou a ser aplicada, tendo surgido daí a expressão "para inglês ver". O tráfico só seria abolido de maneira efetiva em 1851, com a lei Eusébio de Queirós. Com o fim desse comércio, a grande mudança no país foi a acentuação do tráfico interno. Tornou-se mais comum do que nunca a venda de escravos das fazendas do Nordeste para o Sudeste cafeeiro, acompanhando o deslocamento do eixo da economia para essa região. Em 1871, foi promulgada a Lei do Ventre Livre, e, apesar do caráter moderado desta, os fazendeiros perceberam que não nasceriam mais escravos no Brasil. A escravidão estava com os dias contados. O "problema" da integração do negro na sociedade brasileira apenas começava. 

Seria o Brasil um país de negros e mestiços? Será que isso combinaria com a noção de país civilizado de padrão europeu que se pretendia para a ex-América portuguesa? Essas eram algumas questões sobre a identidade brasileira que intelectuais, médicos e cientistas sociais se colocavam no fim do século XIX e início do XX. O pensamento dominante na época era fortemente influenciado pelo evolucionismo e pela teoria de seleção natural de Charles Darwin. Esse biólogo britânico, observando o comportamento das espécies animais, desenvolveu uma teoria que explicava a modificação e evolução das espécies por meio de um processo de melhor adaptação ao meio, que seria sintetizada pela expressão "a lei do mais forte". Seu trabalho teve grande influência no pensamento moderno, sobretudo no que se refere à secularização, exterminando a idéia de que o homem teria sido criado por Deus. Porém, para alguns outros homens de ciência daquele tempo, o evolucionismo poderia também se aplicar ao comportamento humano, o que foi chamado de darwinismo social. 

Segundo as mais expressivas concepções dessa corrente, não somente o negro tende a ser visto como ser inferior ao branco na escala da evolução como o mestiço apresenta em si um problema. Alguns pensadores do darwinismo social chegaram a insinuar que o mestiço seria também infértil. Daí a origem da palavra mulato, termo oriundo de "mula", híbrido nascido do cruzamento do cavalo com o jumento. A explicação ideológica para isso seria a tentativa de desestimular as relações inter-raciais. No contexto brasileiro, a hibridação seria inevitável. Como a historiografia demonstra, o número de mulheres brancas vindas para o território brasileiro foi sempre inferior ao de homens, sendo a mestiçagem conseqüência disso. Seria preciso que os nossos cientistas e intelectuais pensassem em outros modelos.

Dentro dessa concepção, um dos primeiros a tentar identificar, qualificar e diagnosticar o elemento afro-brasileiro foi o escritor, sociólogo e jurista Sílvio Romero, que entendia que o destino da população brasileira era tornar-se branca, já que na mestiçagem o tipo racial mais numeroso tende a prevalecer. Romero acreditava que o branco seria favorecido pelo fim do tráfico e pelo aumento da imigração de trabalhadores europeus. 

Outro brasileiro que se dedicou à questão nesse contexto, o médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues, discordou da tese de Romero. Para ele, não seria possível estabelecer no Brasil uma civilização a partir da mistura entre o branco, o negro e o índio. Estes últimos eram tipos inferiores e não poderiam contribuir para tal ideal civilizacionista. Nina Rodrigues acreditava que a mistura entre raças diferentes criaria indivíduos fracos, que não se identificariam com o modo de viver de nenhuma das duas raças, gerando um tipo inferior. Acreditava que o Estado deveria legitimar as diferenças, para tratar de maneira mais adaptada "superiores" e "inferiores".


Essas propostas não foram utilizadas pela República, na Constituição de 1891 e nos Códigos Civil e Penal da época, que não faziam mais distinções entre "negros", "brancos" ou "pardos". Todos eram cidadãos. O problema seria a pobreza, a vadiagem, a mendicância e a capoeiragem, contravenções punidas pelos artigos 391 a 404 do Código Penal de 1890. Para o direito brasileiro, não era desejável haver uma população desocupada, sem dinheiro e sem lar. Os indivíduos nesse estado, muitos dos quais negros ex-escravos ou descendentes de escravos, poderiam ser enviados a diversas instituições, como às colônias correcionais ou mesmo ao Exército e à Marinha. Não foi o pensamento do darwinismo social que vigorou na concepção dessa legislação, mas com certeza estavam presentes as idéias de ordem e em grande parte a mentalidade higienista. Observa-se, além disso, que o estímulo dado pelo governo brasileiro à imigração de trabalhadores europeus no fim do século XIX e início do XX foi em grande parte justificado pela ideologia de branqueamento da população.

Nos anos 30, enquanto as idéias eugenistas voltavam à moda na Europa, sobretudo a partir da experiência do nazismo alemão, no Brasil tendia-se para uma nova compreensão da sociedade, para uma abordagem culturalista. Já havia uma corrente de valorização do mestiço como representante da identidade brasileira desde a década de 1870, porém seria com o sociólogo Gilberto Freyre que esse modo de pensar ganharia maior expressão.

Em seu clássico Casa-grande e senzala, Gilberto Freyre compõe uma história social e cultural do Nordeste agrário e escravista durante o início do período colonial, o que corresponde à fase de predomínio da economia açucareira. Nesse contexto, o menor número de mulheres e o caráter conciliador do colonizador português favoreceram o desenvolvimento da mestiçagem no país, diminuindo a distância entre a casa-grande e a senzala. O mulato seria o elemento de conciliação entre os extremos existentes. Além disso, Gilberto Freyre aposta na mestiçagem como o principal traço da identidade brasileira, fazendo uma leitura positiva da hibridação. Estão lançadas as bases para a ideologia da "democracia racial", posteriormente apontada como um mito pelas releituras de Gilberto Freyre.

Esse pensamento parece ter sido bem aceito pelo Estado e pela população brasileira. Ao mesmo tempo que a idéia de democracia racial foi incorporada pelo senso comum e colaborou para a construção da própria identidade nacional, o Estado e as instituições receberam com boa vontade essa teoria. A crença numa contribuição igualitária do índio, do negro e do branco participa do mito fundador do Brasil. Além disso, essa igualdade também favorece o estabelecimento do Estado brasileiro que sempre se desejou: sob a impressão de que há igualdade entre as cores e diferenças, cria-se um código comum, evitando-se conflitos e embates. Dessa forma, o Brasil se parece mais com aquilo que gostariam que fosse, já sabendo como ele é.

Sílvia Capanema P. de Almeida. Somos ou não somos racistas?  In: Revista História Viva. Novembro 2006.

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