"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A diversidade latino-americana

A diversidade de ingredientes da América Latina vem chamando a atenção de cozinheiros do mundo inteiro. [...] Para discutir a riqueza da gastronomia latino-americana, a Menu convidou para um bate-papo o historiador Henrique Carneiro [...] e o sociólogo Carlos Alberto Dória [...].

Astecas preparando refeição. Ilustração do Codex Florentine. Século XVI.

Como vocês veem o fato de a diversidade e a complexidade das cozinhas americanas estarem mais evidentes em alguns países, como México e Peru?
Henrique Carneiro Acho que as grandes civilizações pré-colombianas tiveram essa primazia por conta de serem mais cosmopolitas que os índios do Brasil. No Peru, há uma ascendência da civilização pela combinação dos produtos da floresta e do mar. É o mar mais viscoso do planeta, e há recursos, oriundos do que eles chamam de pisos ecológicos, que até hoje fazem a riqueza da região: batatas plantadas acima de três mil metros, amarantáceos (como as quinuas) plantados há mais de quatro mil metros de altitude. E há o cultivo do algodão, que permitiu a eles tecer redes e armadilhas para os peixes.

Carlos Alberto Dória Acho errada a visão de que aos povos da floresta, como os do Brasil, estaria reservado um lugar não tão marcante. Nos anos 1980, houve uma revisão disso: há indícios  de que no Alto Xingu já se tinha uma sociedade bastante complexa, com cidades muradas ligadas por estradas largas e, entre elas, pomares de frutas como pequi e grandes tanques de criação de tartarugas.

Carneiro Ainda assim, me parece que a diferença marcante entre as sociedades andinas pré-colombianas e os povos da floresta é a poderosa rede de intercâmbios entre diferentes regiões e altitudes. Essa homogeneidade da civilização tropical florestal, embora tenha sido desprezada, é de uma riqueza de produtos disponíveis menor do que a dos povos andinos.

Dória As culinárias andina e mexicana têm um viés popular duradouro. Nós, brasileiros, nos ocidentalizamos demais. Nos orgulhamos dos italianos, espanhóis e alemães que vieram para cá, mas não do índio. Na época da independência mexicana (1910), a burguesia deste país reivindicou para si a cultura popular. Houve, então, uma incorporação simbólica, principalmente da cultura pré-colombiana.

E quanto às bebidas tradicionais?
Carneiro O Brasil é o único país de tradição indígena que perdeu o hábito de suas bebidas fermentadas. A chicha (fermentado de milho), feita do Chile à Colômbia, e o pulque mexicano continuam vivos até hoje. Outro exemplo dessa perda das tradições é o cactus: essa planta só existe na América. Em todas as culturas do continente, o cactus faz parte dos pratos. No Nordeste brasileiro, ele só é comido quando a fome é extrema. Retomando a questão da maior complexidade ou diversidade deriva, também, do uso do sal, escasso no contexto indígena brasileiro, enquanto no Peru havia uma corrente de tráfego de sal que abastecia os povos com elementos nutricionais importantes.

Quais seriam os ingredientes fundamentais para a construção das cozinhas latino-americanas?
Carneiro No México, milho, feijão e chiles (pimentas). Depois, alimentos complementares, como as abóboras, o tomate e o abacate.

Dória No Brasil, as guerras entre tupis e tapuias é, no fundo, a guerra do milho e da mandioca. Acho que o milho e a mandioca são alimentos distintivos na América do Sul. É inegável que, entre os alimentos proteicos, a riqueza de peixes na Amazônia é grande, um sustentáculo da alimentação. E, combinada à mandioca, na medida em que o tucupi, além de alimento, é um conservante. E no plano dos pequenos ingredientes, o Brasil é muito rico.

E quanto às frutas?
Dória A variedade de frutas em São Paulo era imensa. Há frutas da minha infância que os jovens hoje desconhecem, como o cambucá. Essa destruição recente influi muito na visão que se tem da nossa culinária. Embora o valor culinário de São Paulo, por exemplo, seja a própria diversidade, por conta das migrações, ela nega a diversidade original nativa. Tanto é que a palavra exótica é aplicada pelo brasileiro às coisas do próprio país.

Carneiro Lembremos que o tomate, americano, é uma fruta. Mas uma fruta destacada nas Américas é a banana-da-terra. Em Cuba, no Equador e na Colômbia, é o acompanhamento geral das comidas. Vende-se banana como se vende batata chips.

É possível traçar diferenças entre a colonização espanhola e a portuguesa na culinária de suas colônias?
Dória O fundamental, quando se trata do período colonial, é perceber que a mesa europeia advém das colônias, quer sejam as especiarias do Oriente, quer sejam os vegetais das Américas.

Carneiro Há também a questão dos cozidos, como a olla podrida (ou puchero) espanhola, que nas Américas tem equivalentes como o ajiaco (colombiano), o sancocho (peruano e boliviano) e o locro (boliviano). No Brasil não temos um cozido dessa natureza, com vegetais. Na Espanha usa-se, sobretudo, grão-de-bico.

Dória Essa relação que se faz na América espanhola com o cozido, nós fazemos com o vatapá. E o que é o vatapá? É a açorda portuguesa. Em todas as colonizações portuguesa, há um equivalente: uma sopa que leva pão. Mas o que unifica a colonização ibérica é o porco, que chega à América e se torna um pilar da alimentação de vários países.

Propala-se hoje uma certa "superioridade" gastronômica do Peru...
Dória A Amazônia é anterior ao Peru e ao Brasil. Então, ela vai engolir o Peru e o Brasil!

Carneiro Na qualificação dos ingredientes e receitas, duvido que o Peru possa ser mais amplo do que as diferentes tradições do Brasil. Mas o País tem produtos muito peculiares, que originam combinações peculiares. E uma diversidade de ecossistemas num espaço pequeno.

Dória Essa "oposição" entre Peru e Brasil se baseia no equívoco de achar que as receitas é que fazem uma culinária. O que o Peru tem de marcante é um grande chef, Gastón Acurio, cujo discurso político é muito articulado, e onde a culinária é um fator de emancipação do trabalhador e está ligada à construção de um modo de vida, o que falta no Brasil. Nossos chefs ainda veem o Brasil pelos olhos europeus, não mais pelos dos franceses, mas, agora pelos dos espanhóis.

E quanto ao trabalho que se faz com relação à Amazônia?
Dória O que existe hoje em termos de atenção culinária na Amazônia está concentrada no Peru, exatamente por causa de Acurio. Nós sentimos falta disso, parece que a Amazônia não nos pertence. Mas se atentarmos a Belém, particularmente ao jovem cozinheiro Thiago Castanho, podemos ver com esperança um tratamento da cozinha amazônica a partir da própria Amazônia.

Carneiro Mas há aqui um intérprete nacional da culinária como Acurio? O próprio (Alex) Atala fez pesquisas na região, mas não se incorporaram. A própria coca peruana, não é só uma droga, pois tem vários usos culinários que foram recuperados, como torta de coca, farinha de coca, e são motivo de orgulho dos peruanos.

Cristiana Couto. Revista Menu. Outubro 2011. p. 57-59.

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