"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 10 de julho de 2011

Os colonos ingleses e os negros

Escravos preparando tabaco na Virgínia, EUA, Angelo Biasioli

O primeiro navio holandês com escravos negros chegou à Virgínia em 1619. Em 1624, em Jamestown, o primeiro menino negro nascia em solo americano. Era William Tucker, filho de africanos e, oficialmente, o primeiro afro-americano.  

Em duas décadas, a escravidão já estava presente em todas as colônias e havia uma legislação específica para ela. A escravidão negra concorria com a servidão branca, mas o contato dos mercadores das colônias com as Antilhas foi servindo como propaganda para o uso da mão-de-obra africana. Aos plantadores, a escravidão negra foi parecendo cada vez mais vantajosa e seu número crescia bastante.

Gustavus Vassa, um nigeriano trazido para os Estados Unidos como escravo e batizado com nome cristão, em 1794, descreve a terrível travessia do oceano que os negros enfrentavam. Em navios superlotados, a mortalidade era alta. Alimentação escassa e chicote abundante eram responsáveis pelo aumento dessa mortalidade. Os que sobreviviam à travessia eram vendidos aos mercados da América. A impressão dessa venda é descrita por Vassa, ele próprio tendo sido leiloado na chegada:

Conduziram-nos imediatamente ao pátio... como ovelhas em um redil, sem olharem para idade ou sexo. Como tudo me era novo, tudo o que vinha causava-me assombro. Não sabia o que diziam, e pensei que essa gente estava verdadeiramente cheia de mágicas... A um sinal de tambor, os compradores corriam ao pátio onde estavam presos os escravos e escolhiam o lote que mais lhes agradava. O ruído e o clamor com que se fazia isso e a ansiedade visível nos rostos dos compradores serviam para aumentar muito o terror dos africanos... Dessa maneira, sem escrúpulos, eram separados parentes e amigos, a maioria para nunca mais voltarem a se ver. 

Muitos autores costumam considerar a escravidão norte-americana como a mais cruel que a América registrou. É extremamente difícil fazer uma comparação de ordem moral (melhor/pior) entre as formas que a escravidão africana conheceu na América. O historiador norte-americano Frank Tannenbaum diz que a escravidão em áreas anglo-saxônicas fez parte de um mundo moderno, com relações sociais individualistas e um sistema jurídico baseado nas leis anglo-saxônicas. Isso faria do escravo mais um objeto do que um ser humano. O escravo negro em zona ibérica faria parte de uma sociedade paternalista e fundamentada no Direito Romano, o que o tornaria um elemento da base da sociedade, mais ainda assim um ser humano. O quanto essas diferenças de fato foram sentidas pelos escravos e qual o melhor chicote ou o trabalho menos árduo são questões que ainda merecem maiores pesquisas.

Houve historiadores, especialmente o sulista Ulrich Phillips, que fizeram defesa de uma escravidão benéfica. A visão foi duramente atacada por historiadores mais críticos como Herbert Aptheker ou Kenneth Stamp. Na verdade, as posições sobre a escravidão colonial dialogam sempre com a situação do negro na sociedade norte-americana.

O que fazia de alguém escravo? Leis votadas na Virgínia, em 1662, determinavam que a condição de escravo fosse dada pela mãe. Dessa forma, o filho de pai inglês e mãe africana seria escravo. Pouco tempo depois, outra questão importante é tratada pela assembléia da Virgínia, que decide que os escravos batizados permanecem escravos. O interessante é colocar a hipótese de amos piedosos batizarem seus escravos. A conversão dos escravos não era, então, obrigatória como nas áreas ibéricas. Integrar ou não o escravo negro no universo cristão, impor-lhe ou não o batismo era um ato de piedade que dependia do proprietário.

Em outubro de 1669, uma nova lei sobre escravos determina que, se um escravo vier a morrer em consequência dos castigos corporais impostos pelo capataz ou por seu amo, não será considerado isso "delito maior, mas se absolverá o amo". A lei continua com lógica implacável: matar o escravo não é ato intencional, posto que ninguém, intencionalmente, procura destroçar "seus próprios bens". Essa lei revela a "reificação" (tornar coisa) do escravo na legislação colonial.

No século XVIII, a legislação sobre os escravos se desenvolve bastante, acompanhando o próprio aumento da escravidão no sul das 13 colônias. Um código escravista da Carolina do Sul faz nessa época (1712) um amplo conjunto de leis se referindo à vida dos escravos, verdadeiro retrato da escravidão nas áreas coloniais inglesas.

Nesse código havia uma proibição de os negros saírem aos domingos para a cidade a fim de evitar ajuntamentos de negros nas Carolinas. Nenhum escravo poderia portar armas de qualquer espécie. Recomendava-se rigor aos juízes que tratassem de crimes cometidos por escravos, especialmente se o crime fosse de rebelião coletiva contra a autoridade instituída. A escravidão havia, assim, crescido a ponto de a revolta dos escravos tornar-se um pesadelo para o mundo branco.

Naturalmente, diante da violência da escravidão, os negros resistiram de várias maneiras. O historiador norte-americano Aptheker retrata algumas formas de resistência: lentidão no trabalho, doenças fingidas, maus-tratos aos animais da fazenda, fugas, incêndios, assassinatos (especialmente pelo veneno), automutilações etc. Em 1740, os escravos tentaram, em Nova York, envenenar todo o abastecimento de água da cidade.

Apesar de os escravos no conjunto da população das colônias não ultrapassarem os 20%, em áreas como a Carolina do Sul eram a maioria da população. E justamente nessas áreas que o medo de uma rebelião generalizada aparecia.

Entre 1619 e 1850, cerca de 400 mil negros foram levados da África para os Estados Unidos. Ao fim da época colonial, havia cerca de meio milhão de escravos nas colônias inglesas da América do Norte. A escravidão não sofreria abalos com o movimento de independência, levado adiante, em partem por ricos escravocratas. Os ventos da liberdade de 1776 tinham cor branca...

No século XIX, um romance abolicionista (A cabana do Pai Tomás - Uncle Tom's Cabin) de Harriet Stowe coloca-se radicalmente contra a escravidão, concluindo que ela era um mal em si. Porém, para poder elogiar um negro como Pai Tomás, a autora atribui a ele virtudes "brancas" como ordem, limpeza e trabalho cristão. O mesmo apareceria no século XX em filmes como ...E o vento levou (Gone With the Wind - 1939), que, com seu racismo declarado, mostrava as delícias da vida de um escravo nos algodoais do Sul. 

KARNAL, Leandro (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2010. p. 63-66. 

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