"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Idade Moderna: permanências e rupturas

"O sonho de Cristóvão Colombo", Salvador Dali

* As permanências - "Ora, para tanto é preciso acompanhar a presença medieval ao longo dos séculos. E, portanto, recolocar a velha questão: continuidade ou ruptura? Sobre a passagem da Antiguidade para a Idade Média, boa parte da historiografia prefere enfatizar os pontos comuns, os prolongamentos. Mas entre Idade Média e Idade Moderna, por muito tempo não se hesitou em aceitar unanimemente a segunda resposta. [...] Só mais recentemente se passou a negar a pretensa oposição. Medievalidade-Modernidade. [...] Hesita-se ainda em admitir que as estruturas modernas são, no fundamental, medievais. [...]

Se não, vejamos. Os quatro movimentos que se convencionou considerar inauguradores da Modernidade - Renascimento, Protestantismo, Descobrimentos, Centralização - são de fato medievais.

O primeiro deles, o Renascimento dos séculos XV e XVI, recorreu a modelos culturais clássicos, que a Idade Média também conhecera e amara. Aliás, foi em grande parte através dela que os renascentistas tomaram contato com a Antiguidade. As características básicas do movimento (individualismo, racionalismo, empirismo, neoplatonismo, humanismo) estavam presentes na cultura ocidental pelo menos desde princípios do século XII. Ou seja, como já disse muito bem, 'embora o Renascimento só invoque a Antiguidade, é, realmente, o filho ingrato da Idade Média'.

O Protestantismo, do seu lado, foi em última análise apenas uma heresia que deu certo. Isto é, foi o resultado de um processo bem anterior, que na Idade Média tinha gerado diversas heresias, várias práticas religiosas laicas, algumas críticas a um certo formalismo católico. Nesse clima, a crise religiosa do século XIV comprovou ser inviável para a Igreja satisfazer aquela espiritualidade mais ardente, mais angustiada, mais interiorizada. Foi exatamente neste espaço que se colocaria o protestantismo. [...]

Os Descobrimentos, por sua vez, também se assentavam em bases medievais nas técnicas náuticas (construção naval, bússola, astrolábio, mapas), na motivação (trigo, ouro, evangelização) e nas metas (Índias, Reino de Preste João). Também existiam antecedentes medievais nas viagens normandas ao Oriente e à América (esta comprovadamente atingida pelos noruegueses por volta do ano 1000), italianas à China (Marco Polo, para nos limitarmos ao navegador-descobridor mais famoso, era em todos os sentidos um homem muito mais 'medieval' do que 'moderno'. [...]

A Centralização Política, por fim, era a conclusão lógica de um objetivo perseguido por inúmeros monarcas medievais. Realmente, o Estado moderno, unificado, caracterizava-se pelo fato de o soberano ter jurisdição sobre todo o país, poder de tributação sobre todos os seus habitantes, monopólio da força (exército, marinha, polícia). Ora, esta tinha sido a tripla meta de reis como, por exemplo, Henrique II da Inglaterra (1154-1189) ou Luís IX da França (1226-1270). O sentimento nacionalista, que fornecia o substrato psicológico necessário à concretização do poder monárquico centralizado, também era [...] de origem medieval. [...]

De maneira bastante ampla, talvez possamos dizer que aquilo que não se fez na idade Média não se poderia fazer na Idade Moderna. Aquela gerava, esta desenvolvia. Tanto que, superado o momento de transição e já dentro da Idade Moderna clássica (séculos XVII-XVIII) - o chamado Antigo Regime - é ainda essencialmente a Idade Média que encontramos. De fato, os três elementos que constituem o Antigo Regime (monarquia absolutista, sociedade estamental, capitalismo comercial) tinham raízes nos séculos anteriores. Mais uma vez, a essência é medieval, a roupagem moderna. [...]

Em suma, a mecânica do Antigo Regime já se encontrava esboçada em fins da Idade Média. Noutros termos, não seria absurdo estender-se os séculos 'medievais' até as transformações, estas sim novas, 'modernas', provocadas pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial." FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média e o nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 170-173.

* As rupturas - "Entretanto, mesmo que os elementos de continuidade sejam muito marcantes, a perspectiva própria à Idade Média é bem diferente da visão de mundo dos Tempos Modernos. A religião, que havia sido durante mil anos o elemento de integração das sociedades medievais, perde lentamente sua importância a partir do desenvolvimento do racionalismo moderno. A cultura renascentista do século XVI, a Revolução Científica do século XVII e o Iluminismo da época subsequente são os grandes marcos no lento processo de perda da transcendência do pensamento Ocidental.

Com efeito, o período que vai do Renascimento ao Iluminismo caracteriza-se, sob vários aspectos, pelo deslocamento da perspectiva medieval em relação à natureza, ao indivíduo e à finalidade da vida terrena, A mentalidade medieval havia rejeitado a autonomia da razão. A razão da Idade Média era frágil e cativa da religião. Só podia ter valor se iluminada através da fé e da verdade revelada pelas Escrituras Sagradas. Pela ótica da Época Moderna, o mundo e o intelecto são autosuficientes, sendo a natureza um sistema matemático que opera sem a intervenção de milagres. [...]

A exemplo da natureza, a História também não dá saltos. [...] A melhor caracterização do Mundo Moderno é como um tempo de transição no qual se processou um rompimento gradual, mas inexorável, com os princípios fundamentais da cultura medieval. Um dos principais traços da modernidade, no que se refere à organização social, foi a ruptura com a rígida divisão medieval das três ordens: trabalhadores, guerreiros e sacerdotes. [...]

A Época Moderna transformou radicalmente a relação entre o homem e o mundo. A religiosidade persiste nesse período como uma experiência presente e palpável em todos os atos da vida pública e privada. Mas lentamente desaparece  a certeza absoluta de que o homem justo tem o seu lugar reservado no céu. As elites cultas dos séculos XVII e XVIII julgam inaceitável rejeitar as novas descobertas da ciência em nome da religião, da tradição e da autoridade da Igreja. A sociedade não é mais iluminada ou explicada unicamente pela vontade de Deus. Assiste-se a uma crise profunda do providencialismo, ou melhor, a um abandono progressivo da crença de que Deus é um agente ativo na História." CERQUEIRA, Adriano e LOPES, Marcos Antônio. A Europa na Idade Moderna: do Renascimento ao Século das Luzes. Belo Horizonte: Lê, 1998. p. 17-18.

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