"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O demônio ataca: o surto de Salem (os puritanos de Massachusetts)

Imagem fantasiosa dos julgamentos de Salem. Enquanto a moça depõe, raios caem do céu.

A colônia de Massachusetts recebera puritanos descontentes com a Igreja inglesa. Sua disposição era contrária à tolerância religiosa que caracterizava outros grupos protestantes. Na colônia, esses puritanos de influência calvinista acreditavam numa Igreja forte que tivesse poderes civis.

Para a construção dessa Igreja-Estado tomaram-se várias providências. Primeiro estabeleceu-se que somente os membros da Igreja Puritana poderiam votar e ter cargos políticos. Depois, tornou-se obrigatória a presença na igreja para as cerimônias, fato que não acontecia no resto das Igrejas protestantes. Todos os novos credos deveriam ser aprovados pela Igreja e pelo Estado. Por fim, estabeleceu-se que Igreja e Estado atuariam juntos para punir as desobediências a essas e outras normas. Essa colônia aproximava-se, dessa forma, dos ideais católicos da teocracia.

[O demônio ataca: o surto em Salem] Um dos fatos mais significativos derivado do ideal de Igreja-Estado foi a perseguição às bruxas. O autoritarismo de uma religião que se pretendia única desencadearia, naturalmente, na perseguição de todas as formas de contestação - fossem reais ou imaginárias.

As acusações de bruxaria, uma constante em todo o mundo cristão da época, existiam desde o início da colonização. No entanto, um surto de feitiçaria como o de Salem, em 1692, assumia proporções inéditas. Nesse ano, um grupo de adolescentes acusou várias pessoas de enfeitiçá-las. O processo acabou envolvendo muitos membros da comunidade, entre homens e mulheres.

A cidade de salem viveu uma histeria coletiva. Havia surtos frequentes: moças rolavam gritando, caíam doentes sem causa aparente, não conseguiam acordar pela manhã, animais morriam, árvores cheias de frutos secavam. As razões, no entender dos habitantes de Salem, só poderiam ter ligação com uma ação demoníaca.

Alguém era acusado de feitiçaria e comparecia diante do juiz. O juiz fazia o acusado e as vítimas (as moças aflitas, como eram usualmente chamadas) ficarem frente a frente. Era comum as moças terem novo ataque histérico diante do suposto feiticeiro. os acusados eram enviados à prisão. A acusação caía sobre gente de todas as categorias sociais e sobre pessoas que gozavam da confiança da comunidade há anos. O acusado era examinado, Havia uma crença generalizada de que a associação com o demônio produzia marcas no corpo: um tumor, uma mancha, regiões que não sangravam, polegar deformado. Submetidos a "tratamentos especiais", muitos réus acabavam confessando que, de fato, estavam associados ao demônio e realizavam feitiços contra a comunidade.

A histeria das feiticeiras não seria possível sem as ardentes pregações de pastores como Cotton Mather (1663-1728). Esse pastor, nascido em Boston, escreveu o livro As maravilhas do mundo invisível, em que o leitor é levado a conhecer as grandes forças maléficas que agem sobre o mundo. Como no mundo católico, a crença num mal real e com ação efetiva era um dado social que unia desde o rei James I (autor de livro sobre feitiçaria) até o mais humilde camponês.

Os processos de Salem já receberam várias explicações. Algumas, de caráter mais psicológico, lembram as tensões entre mães e filhas, estas fazendo coisas que não poderiam normalmente fazer e alegando estarem enfeitiçadas. Em outras palavras, alegando o poder do demônio, uma jovem poderia gritar com sua mãe ou mesmo ficar nua! Afinal, era tudo obra do demônio... A moral puritana de oração e trabalho era tão forte que os jovens não podiam, por exemplo, praticar esportes de inverno como patinar, pois isso era considerado imoral. Assim, diante dessa vida dura, a possessão passou a ser uma boa saída.

Outras explicações remetem às tensões internas das colônias - entre as principais famílias - em que acusar o membro de uma família rival de bruxo ou bruxa tinha um grande peso político.

Conflitos entre indígenas e puritanos, como a chamada Guerra do Rei Filipe (nome que os colonos deram a um líder indígena em 1675-78), tinham deixado a Nova Inglaterra em tensão permanente. Muitos colonos haviam sido mortos ou capturados. As tensões entre vizinhos vinham se acumulando. Tudo isso colaborava para explicar o ambiente que gerou o surto de Salem.

Por fim, sem esgotar as explicações, há de se levar em conta todas as frustrações dos protestantes no Novo Mundo, onde o sonho de uma comunidade perfeitamente construída de acordo com as leis de Deus e da Bíblia não havia se realizado. Os pastores puritanos viram no aparente surto de feitiçaria uma maneira de recuperar o controle e o entusiasmo do grupo. Os habitantes de Massachusetts haviam se dado conta de que não apenas a Bíblia e as boas intenções haviam atravessado o oceano, mas todas as suas mesquinharias, maledicências e tensões. Melhor seria, assim, atribuir esses problemas ao demônio e a seus seguidores.

Ao final da crise, quase 200 pessoas tinham sido presas e 14 mulheres e 6 homens executados. A teocracia puritana tinha deixado um saldo trágico na memória dos colonos. Quase 100 anos depois, a primeira emenda à Constituição dos EUA estabelecia que o Congresso não faria leis sobre o livre exercício da religião.

KARNAL, Leando (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2010. p. 51-53.

Galeria de imagens: Cenas do filme "As bruxas de Salem" (Nicholas Hytner, EUA, 1996)















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