"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Dos caçadores-agricultores às lojas de departamento: "Nem frutas, nem pássaros"

Calendário agrícola medieval: as colheitas marcavam as festas e as feiras.

Uma das profundas mudanças ocorridas na história da humanidade é tão óbvia que raramente é comentada: apesar de um dia terem sido de extrema importância, as diferenças gradativamente deixaram de ser nítidas. As estações perderam suas características de distinção; e assim aconteceu com as diferenças entre noite e dia, verão e inverno. À medida que o céu noturno se tornava menos importante, a lua também diminuía sua influência sobre as atividades humanas. Trabalho e lazer, cidade e campo deixaram de proporcionar esses contrastes.


No imenso espaço de tempo em que predominaram os caçadores e agricultores, as estações foram de extrema importância. O verão e o inverno, a primavera e o outono determinavam o que as pessoas comiam, as cerimônias de que participavam, os confortos e dificuldades de suas vidas cotidianas. A maioria dos seres humanos, mesmo em 1800 d.C., ainda era composta de agricultores e criadores de rebanhos, e profundamente afetada pela mudança das estações. Assim, no inverno, ovos, frutas e até mesmo comer carne, a não ser que tivesse sido salgada, eram luxos. O verão da fartura ceida lugar a um inverno de contenções. Thomas Hood, poeta inglês, uma vez escreveu:

"Nem frutas, nem flores, nem folhas, nem pássaros,
Novembro."

Manuscritos religiosos feitos há 1000 anos antes enfatizavam como as estações eram distintas umas das outras. Para cada mês, pintavam um cenário diferente ou propiciavam um determinado tipo de tarefa, dando um sabor especial a cada período. Hoje em dia, nenhum mês consegue ser marcado da mesma forma por um trabalho ou uma tarefa específicos.

Hoje, se é que há uma tarefa típica de um determinado mês, essa provavelmente seria simplesmente uma atividade de lazer: armar a árvore de Natal ou assistir à final do campeonato de futebol. Ao contrário, um manuscrito bizantino datado do ano 1100 escolhia as tarefas mensais típicas de um dia de trabalho nos Bálcãs e na Ásia Menor. Em abril, o pastor era representado preparando-se para tirar seu rebanho do curral e levá-lo aos pastos frescos das colinas, após ter passado o inverno alimentando-se do feno previamente estocado. Maio era simbolizado pelas flores. Junho representava homens cortando a grama viçosa prontos para o preparo do feno. Já em outubro, o verão estava terminando, e os caçadores traziam em seus pulsos um pequeno pássaro chamariz para atrair e capturar outros pássaros comestíveis de maior tamanho, antes que migrassem. Em novembro, os lavradores preparavam a terra para a semeadura da safra do ano seguinte. E assim, numa sequência ordenada, o ano de trabalho era ditado pelas estações, embora as tarefas reais variassem de região para região.

Até os combates de guerra eram afetados pelas estações. No Hemisfério Norte, as guerras internacionais geralmente eclodiam na primavera ou verão. Nos anos entre 1849 e 1938, um total de 44 guerras foram travadas nas terras do norte onde havia um nítido contraste entre inverno e verão. Dessas guerras, somente três começaram nos meses de inverno e 26 começaram durante os meses mais quentes de abril a julho. A chegada da primavera oferecia a chance de atacar e derrotar o inimigo, pois os rios eram atravessados com maior facilidade, as estradas rurais ficavam menos obstruídas pela lama e gelo, os dias eram mais longos e os exércitos, que avançavam pelo interior em época de plena floração, podiam roubar os comprar seus alimentos. Na China, a época tradicional para os combates rápidos era o outono, pois a colheita acabara de ser feita, os rios eram mais fáceis de atravessar e a terra seca permitia que as tropas marchassem com maior rapidez até a localidade escolhida para seu primeiro ataque.



As viagens eram sempre reguladas pelas estações. Na Ásia, o início ou fim da monção anual indicava a partida das esquadras mercantes., fossem os típicos navios costeiros árabes, de um mastro e uma vela só, ou os paraus, embarcações típicas da Malásia. Na Europa, a maioria das viagens era adiada até que as tempestades de inverno houvessem passado. No século XVI, a maior parte dos peregrinos alemães saía de Veneza rumo à Terra Sagrada, em junho ou julho, tendo partido da Alemanha logo que a neve dos Alpes tivesse derretido.


Na Europa, o primeiro dia de maio homenageava o limite entre frio e calor, entre fome e fartura. A meia-noite da véspera do dia 1º de maio era recebida com o toque de tambores e o sopro de berrantes. Havia danças em torno de mastros enfeitados, às vezes envolvendo tantas brincadeiras sexuais que, como consequência, o dia acabou sendo denunciado pelos sacerdotes, na época da Reforma religiosa. De repente, o leite e a nata se tornavam abundantes. Em partes da Inglaterra, um dos pontos altos do dia 1º de maio era ordenhar vacas diretamente em cima de um balde contendo vinho xerez ou do porto, de forma que os jatos de leite quente e cremoso tornassem a bebida mais saborosa.


A celebração do primeiro de maio se estendeu às cidades cada vez mais populosas. Em Londres, no século XVIII, as mulheres que trabalhavam na ordenha fizeram deste também o seu dia. Um século depois, tornou-se o dia dos limpadores de chaminés que, com a chegada de noites mais quentes, espanavam sistematicamente a fuligem que se havia acumulado nas chaminés das casas durante o inverno. Na parte continental da Europa, os socialistas e sindicalistas acabaram tomando para si o dia 1º de maio. Sua escolha era natural, pois por muito tempo fora considerado um dia de esperança e renovação. Nas regiões da China onde o inverno era rigoroso, a visão de flores frescas nos mercados das cidades era equivalente ao dia 1º de maio. As primeiras peônias amarelas eram as favoritas e, até mesmo no século VIII, elas já impunham o alto preço equivalente a "cinco pedaços de seda".


A chegada de maio e sua enxurrada de leite, carne, ovos, manteiga e flores tornaram-se menos excitantes devido a certas inovações como o barco a vapor, as ferrovias, as fábricas de enlatados e as máquinas de refrigeração. Na segunda metade do século XIX, chegou à Europa uma chuva de novos tipos de alimentos vindos das terras distantes. Já em 1850, um quarto dos pães consumidos na Inglaterra vinham de grãos produzidos nos EUA e na Ucrânia. Na mesma época, alimentos enlatados eram despachados nos navios pelo Atlântico até a Europa: latas de carne bovina, carne de carneiro e peixe seguidas de latas de vegetais, frutas e geléia. Em 1880, carne bovina e ovina já era despachada para a Europa de lugares tão distantes quanto Buenos Aires e Sidney.


No ano 2000, em cidades prósperas, todas as grandes lojas de departamento exibem morangos, abacaxis e rosas, todos fora de estação, mas trazidos de longe. Mas, nos séculos anteriores, fosse ao longo do rio Amarelo ou do rio Avon, não fazia sentido pedir uma fruta ou uma flor que estivessem fora de estação.


BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Mundo. São Paulo: Fundamento, 2004. p. 253-255.

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