"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Mecanismos da conquista colonial

Cena do filme "1492 - A conquista do paraíso", de Ridley Scott


[Mecanismos da conquista colonial] Violência, injustiça, hipocrisia caracterizam a conquista. Não se trata de colocar a história americana sob a égide da legenda negra. Simplesmente, e longe de qualquer julgamento moral, quer-se sublinhar que as formas, os métodos, as maneiras da conquista, mesmo que se queira (e, em certos casos extremos se pode) justificá-los em nome da moral corrente dos séculos XV e XVI, não continham em si nenhum germe de desenvolvimento positivo, pois destinados à mais completa involução, cujas consequências vencidos e vencedores teriam suportado juntos.

O poeta canta:
"La espada, la cruz y el hambre iban diezmando la familia salvage" (Pablo Neruda).

Talvez não seja inútil partir desses versos para tentar perceber por que elementos  - que encarados em seu conjunto constituem um mecanismo - foi possível a conquista da "mais rica e bela parte do Mundo" (Montaigne).

La espada...

A palavra nos introduz diretamente no cerne do assunto, pelo menos do seu aspecto militar, belicoso, sangrento.

Dos desenhos ingênuos do início do século XVI aos afrescos gigantescos de Diego Rivera no século XX, a desproporção dos armamentos entre as duas partes em luta foi frequentemente posta em relevo: aço contra madeira e couro; armas de longo alcance contra armas de alcance curto e muito curto. Além disso, concepções táticas e estratégicas elaboradas contra princípios bastante rudimentares... Mais precisamente, é necessário mostrar que a superioridade do armamento dos brancos sobre o dos índios se evidencia em três pontos essenciais:

a) pelas armas de fogo, uma grande superioridade de ordem psicológica e uma possibilidade maior de combate à distância;
b) pelos meios de transporte (o cavalo), uma incomparável superioridade;
c) pelo emprego do aço, armas de ataque e de defesa infinitamente mais resistentes.

Dizia Fernão Cortez: "Nós não tínhamos, afora Deus, nenhuma outra segurança além de nossos cavalos". (...)

Os espanhóis compreenderam muito depressa que a margem de segurança que lhes assegurava a técnica militar, tornava-se muito pequena e que teria sido muito fácil alterar um equilíbrio que, apesar das aparências, permaneceu frágil durante muito tempo. A conquista  efetuada pelas armas devia, portanto, ser mantida por outros meios.

...la cruz...

O primeiro gesto de Cristóvão Colombo, ao tomar posse da terra, foi fincar uma cruz. Tomada de posse (com bandeira dos reis de Espanha), justificação, arma, instrumento de reinado: a conquista espiritual das Américas começava.

Mas a religião também desempenhou um grande papel na conquista material, militar, do Novo Mundo. Um conjunto surpreendente de circunstâncias de ordem religiosa contribui poderosamente para tornar a tarefa mais fácil para os espanhóis. Com efeito, a chegada dos brancos foi percebida, tanto no México como no Peru, por toda uma série de sinais e de profecias que asseguravam a chegada iminente de novos deuses... ou de calamidades.

(...) Mas ainda há mais. Todo o mundo americano, na base de sua esfera religiosa, conheceu o mito de dois civilizadores que, após haverem estendido seus benefícios aos homens, desapareceram prometendo voltar. Isto nos ajuda a compreender como e por que a chegada dos homens brancos é percebida pelos índios através da rede do mito.

Inocência, ingenuidade, "selvagens".É fácil sorrir. Mas o terror - não se pode empregar outra palavra - que se apoderou dos americanos em 1939, por ocasião de uma célebre emissão radiofônica de Orson Welles anunciando aos seus concidadãos, como fato consumado, o terrífico desembarque dos marcianos na Terra, acaso não pode ajudar a compreender como a credulidade pode se alastrar mesmo entre "civilizados"?

O desconhecido, fortalecido pelo esquema mítico e religioso, contribuiu poderosamente para simplificar a "entrada em cena" dos espanhóis. Com certeza, a "divindade" pessoal dos conquistadores rapidamente perdeu o seu encanto e se apagou. Mas resta assinalar que a falência das religiões indígenas ajudou a penetração da cruz. Essa falência foi facilitada, também, pelo fato de que a autoridade religiosa e a autoridade política estavam frequentemente confundidas em uma mesma pessoa física, acarretando a queda do poder leigo, o desmoranamento do poder religioso e dos valores que representava. Assim, o poderoso cimento que a religião deveria ter representado para a manutenção dos Estados e das civlizações indígenas se dissolvia e deixava penetrar de maneira formal e superficial a nova religião. Penetração fácil: os batismos se sucedem e se multiplicam.

...y el hambre...

A fome. Não se deve, absolutamente, tomar esta palavra no sentido próprio: a subalimentação na América do Centro e do Sul não é um fato da conquista; os índios se alimentavam bem, ao menos até a metade do século XIX. Se nos servimos deste termo, é porque ele nos parece resumir bem todos os valores da cultura material que foram levantados pela conquista. Toda uma certa ordem de coisas foi levantada: ritmos de trabalho, tipos de cultura, tipos de vida. Tudo foi mudado ou, ao menos, consideravelmente modificado.

(...) Nessas condições é possível compreender melhor todos os aspectos da queda colossal da população indígena durante o século XVI. Sem penetrar no labirinto dos números, é possível afirmar que a metade, senão dois terços, da população indígena desapareceu em cerca de cinquenta anos. Pode-se verdadeiramente acreditar que houve matanza, assassinato premeditado? Seria ceder muito facilmente às explicações simplistas da legenda negra. Certamente houve assassinatos, assassinatos premeditados, mortes deliberadas, genocídio. É um fato que nenhuma legenda rosa pode apagar. E é um fato que nossa consciência moral nunca deve esquecer. Mas ao nível da explicação, da compreensão crítica deste enorme fenômeno que foi a conquista, isso não pode ser suficiente. É preciso lembrar que a simples transferência (por assim dizer) da população da costa para os altos planaltos, acarretando toda uma série de modificações no tipo de vida, determinava uma forte mortalidade, que as mudanças de ritmos de trabalho (mais do que as quantidades de trabalho exigidas) constituem um elemento desfavorável para a demografia indígena, que as mudanças de tipo higiênico também têm consequências negativas.

A desestruturação é, portanto, um elemento, e um elemento determinante, da conquista. (...)

Assim, por este mecanismo complicado, a conquista foi possível. Obra de um grupo muito pequeno de homens contra massas demográficas enormes, ela é absolutamente incompreensível se quisermos explicá-la com argumentos de "coragem", o que não deixou de ser feito, de "proteção divina", ou, ainda, por uma esmagadora inferioridade de civilização das populações vencidas. Trata-se, na realidade, de um mecanismo extremamente complexo, no qual, em proporções diferentes (inútil tentar estabelecer receitas absolutas) entraram em combinação os elementos que tentamos apresentar (...). ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 12-24. (Coleção Khronos, vol. 4).


[Os presunçosos conquistadores cristãos europeus] Uma cultura não deve ser avaliada pela quantidade de bens culturais que possui, nem tampouco pela capacidade intelectual de produzir conhecimentos semelhantes aos de povos mais sofisticados. Cada povo tem um modo próprio de viver, sua maneira de buscar o equilíbrio nas relações sociais e com a natureza.


Quando se forma um modelo a partir do pressuposto de que existem culturas superiores, criam-se preconceitos e justificam-se dominações e injustiças. Foi com base nessa ideia que os europeus tentaram legitimar a conquista, ou seja, acreditavam-se superiores aos povos aqui encontrados, consideravam-se donos de verdade, até mesmo emissários de Deus.

O historiador Ciro Flamarion Cardoso faz a seguinte análise das consequências dessa presunção:

Os conquistadores destruíram monumentos - grandes centros urbanos da última fase pré-colombiana foram transformados em cidades espanholas (México, Cuzco) - e obras de arte (fundidas quando confeccionadas com metais preciosos), queimaram quase todos os códices (manuscritos pré-colombianos, encontrados principalmente na área que hoje corresponde ao México centro-meridional). Mais grave ainda, a conquista e as primeiras fases da colonização significaram a destruição física da maioria absoluta dos índios, através de epidemias repetidas, escravidão e trabalhos forçados diversos, confisco de terras, ruptura violenta da organização social, familiar, religiosa, cultural. CARDOSO, Ciro Flamarion. América pré-colombiana. São Paulo: Brasilienese, 1984. p. 8.

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