"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 7 de março de 2011

A Europa Ocidental no início dos Tempos Modernos


"O nascimento de Vênus", Sandro Boticelli

"Ouça os versos do poeta. Cante comigo os feitos da gente lusitana:

Cessem os sábios Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o feito ilustre Lusitano
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo que a musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

[Você que está vivendo no século XXI talvez conheça esse poema publicado em 1572. Talvez conheça a história que ali está narrada de forma heróica]

O autor deste poema viveu em minha época - a época do Renascimento.

Escrevendo Os Lusíadas, Luís de Camões procurava demonstrar o espírito de minha época. Ela está muito distante para você que vive no início do século XXI. Nesse espírito estava contida a redescoberta da Antiguidade Clássica. Ao mesmo tempo, havia a vontade não disfarçada de superá-la, exaltando as nossas realizações. Com essas realizações os homens dos Tempos Antigos jamais poderiam sequer sonhar.

Quais eram as realizações do meu tempo que o poeta destacava?

Quais as realizações de seu tempo - início do século XXI - que algum poeta já destacaou?

Camões não foi o único que marcou a época do Renascimento com o seu gênio criador. Muitos outros nomes na história das artes, das letras e das ciências caracterizaram esse período que se estendeu, em linhas gerais, de 1450 a 1600, e que eu acreditava ser o início de novos tempos: - Tempos Modernos.

O que era esse "mundo moderno" que apenas se delineava?

Era o mundo das grandes navegações e descobrimentos, um dos fatos históricos, que prenunciavam uma mudança de rumos na História das sociedades ocidentais. Um mundo que rompia com o passado medieval e buscava suas raízes na Antiguidade Clássica greco-romana. Um passado muito remoto para você que vive no século XXI, e do qual talvez só se recorde ao ver os filmes chamados "históricos" e ao ler certas expressões latinas nos manuais jurídicos ou nas pedras frias dos monumentos. Um passado muito próximo e bastante vivo, porém, para os homens mais cultos do meu tempo.

Pressentíamos, então, estar vivendo tempos novos, embora nos referíssemos com frequência à Antiguidade.

Tempos novos, horizontes novos!

No final da Idade Média, o avanço dos turcos otomanos parecia estreitar rapidamente as fronteiras orientais da Europa, deixando inseguros todos nós que habitávamos o mundo cristão. Tudo isso cessou a partir da expansão marítima. Avançamos pelo Mar Tenebroso, rumo aos "Novos Mundos", em busca de espaços novos.

Mas não apenas novos horizontes físicos. Novas ideias, novos espaços mentais, também. Os autores do meu tempo procuravam reintegrar a herança clássica, isto é, greco-romana, mas - ao mesmo tempo - buscavam a redescoberta da Natureza e do próprio Homem. A partir de agora, os temas fundamentais do conhecimento, da representação e da expressão, são a Natureza e o Homem, tanto nas ciências, quanto na filosofia e nas artes.

Tempos novos, tempos de descobrimentos e invenções.

Descobrimento de mundos que ficaram para trás, perdidos no tempo dos longos séculos - as civilizações clássicas. Descobrimento de mundos distanciados no espaço, bloqueados pelos "mares nunca dantes navegados" - o Novo Mundo.

Invenção de novas técnicas - como as Grandes Invenções, Invenção de novos espaços mentais - como o Renascimento Cultural e as Reformas religiosas.

Tempos Modernos, tempo em que as coisas são criadas pelo Homem. Este o tempo no qual eu vivi, um tempo muito diferente da Idade Média que muitos de meus companheiros costumavam designar - de maneira preconceituosa - "a longa noite dos mil anos".

Gostávamos de destacar o caráter particular de nossa época, e por isso estávamos sempre chamando a atenção para as múltiplas transformações que ocorriam.

Transformações demográficas. Após mais de um século de mortandade, a população da Europa ocidental voltou a crescer numericamente. Eu já não ouvia pelos caminhos da Europa a lamentação típica dos tempos finais da Idade Média: "Da fome, da guerra e da peste, livrai-nos, Senhor".

Transformações econômicas. Após um longo período de crise, a produção agrícola voltou a crescer. O comércio e o artesanato prosperavam. Os metais preciosos vindos da África, do oriente e da América incentivavam as trocas, enriquecendo os banqueiros e os comerciantes que traficavam com o Novo Mundo e os entrepostos afro-asiáticos.

Transformações políticas. também. A Europa não está mais dividida apenas em feudos. O mapa da Europa assinala, agora, a existência dos Estados Modernos, governados pelos Príncipes, a quem geralmente chamávamos de reis. Esses príncipes eram a autoridade suprema da nação, possuindo soberania absoluta sobre todos os homens e todas as coisas situadas dentro das fronteiras de seus reinos. Era o absolutismo monárquico.

E, ainda, transformações sociais. O feudalismo estava em lenta decadência, mas persistiam numerosos aspectos senhoriais. A ascensão da burguesia, com seus interesses, valores e comportamentos, ditava características novas à sociedade. Coisas até certo ponto estranhas aconteciam: muitos nobres já se dedicavam a atividades comerciais, enquanto muitos burgueses procuravam identificar-se com a nobreza, buscando ascender socialmente e distinguir-se das camadas populares.

Eram traços novos, modernos, sem dúvida. Mas era ainda uma sociedade muito diferente desta em que você vive. Ela era uma sociedade fortemente hierarquizada, composta de estamentos e ordens, onde as camadas privilegiadas eram o clero e a nobreza. Dava-se pouca importância ao papel da fortuna, especialmente ao dinheiro. Exaltava-se a tradição, a vassalagem, a honra e o cavalheirismo.

E a população rural, como vivia?

Todas essas transformações afetaram a vida dos camponeses, possuidores ou não das terras que cultivavam. Suas obrigações se ampliaram: além das contribuições que deviam aos senhores leigos e eclesiásticos, os camponeses suportavam, agora, o peso crescente dos impostos devidos aos monarcas. Situação quase insuportável, que se traduzia em revoltas rurais.

Houve, por fim, transformações na maneira de pensar. O início dos Tempos Modernos foi caracterizado pelo Humanismo, isto é, pela tentativa de definir e afirmar o lugar do homem no Universo, assim como as relações entre ele e seu Criador. A questão do humanismo, assim, colocava em destaque o problema da fé, logo o problema da própria religião cristã. Por isso, a questão do humanismo esteve presente tanto no Renascimento cultural quanto nas Reformas religiosas.

Para os pensadores de minha época, o Humanismo era uma maneira de compreender o mundo em que viviam. Foi o Humanismo que serviu de referência às criações artísticas, literárias e científicas que compuseram o Renascimento.

Quais eram as bases desse movimento intelectual?

No Humanismo encontravam-se o paganismo - decorrente da redescoberta da mitologia clássica - e o cristianismo - pela fidelidade às crenças e aos príncípios da religião cristã. Mas o resultado desse encontro não foi uma simples soma, mas um processo de secularização. Ou seja, os pensadores de minha época procuravam compreender o mundo a partir do ponto de vista essencialmente terreno, buscando suas razões e seus fins na própria vida. Embora quase todos eles ainda admitissem que o Homem e a Natureza foram criados por Deus, achavam que ambos deveriam ser explicados a partir de si mesmos.

Tempos Modernos. Ao Homem, situado no ápice da pirâmide da criação por sua inteligência, cabia o papel mais importante do Universo.

Você poderia me perguntar: o que pretendiam os humanistas e os renascentistas?

Eles pretendiam, em primeiro lugar, recuperar a tradição clássica. Possuíam uma admiração entusiasmada e realizavam uma análise atenta das formas estéticas greco-romanas. Interessavam-se pela História e pela civilização greco-romana, tidas como exemplos a serem imitados.

Pretendiam também fazer a revisão do passado imediato, isto é, da Idade Média, que muitos consideravam um período de "trevas" e "ignorância". Descontentes com a "barbárie" e o "atraso" que viam nesse passado recente, voltavam-se para um tempo mais antigo.

Um velho preconceito dos homens, que reaparecia numa Idade Moderna: a de considerar como "bárbaro" ou atrasado" tudo aquilo que não se assemelha aos seus valores; a de considerar como "estacionárias" as culturas que parecem não se desenvolver na mesma direção da sua.

Humanistas e renascentistas pretendiam, por fim, integrar a herança oriental, representada pelas contribuições bizantina e muçulmana. Essas contribuições expressaram-se, sobretudo, através, das "Grandes Invenções", que para muitos constituiriam o verdadeiro marco iniciador dos tempos modernos.

Havia, assim, um tríplice projeto. Inspirando-se nas civilizações clássicas, no que elas tinham produzido intelectual e artisticamente, os humanistas constituíram um novo ideal de formação e de expressão da personalidade. Você já deve ter ouvido falar no ensino de "Humanidades". Para os humanistas, a formação do indivíduo estava intimamente relacionada ao conhecimento de disciplinas como o Grego, o Latim, o Hebraico, a Literatura, a Filosofia. E também a História - que para eles deveria ser o conhecimento da vida dos grandes homens, dos "varões ilustres", e de tudo aquilo que a Antiguidade Clássica produzira de melhor.

E o que pretendem os pensadores de seu tempo? Como eles entendem que deva ser a formação do indivíduo? Que disciplinas são executadas nas escolas e universidades do século XXI?

O Renascimento: o que foi esse movimento intelectual que preencheu a época em que vivi?

Esse movimento artístico, literário, filosófico e científico tem suas origens associadas às condições econômicas e sociais geradas pela prosperidade da burguesia mercantil e de certos setores da aristocracia feudal, e especialmente os monarcas absolutistas. Suas primeiras manifestações tiveram lugar na Itália: em Florença, depois em Roma, além de centros menores como Luca, Pisa, Mântua e Modena. E para isso contribuíram a riqueza, a independência, a relativa liberdade criativa existente nas cidades italianas.

Mas o Renascimento não foi o resultado, apenas, do capital mercantil e da nascente burguesia. Nas cidades flamengas, possuidoras de condições materiais semelhantes, assim como nas cidades alemãs do Reno e da Liga Hanseática, com suas poderosas burguesias, as produções renascentistas assumiram formas e características diversas daquelas que predominavam na Itália.

O modelo, porém, sempre foi a Itália, embora o movimento renascentista tenha surgido em vários lugares, adquirindo em cada um dos países seu colorido específico.

Nas regiões para além dos Alpes, o Humanismo e o Renascimento tendiam a distanciar-se cada vez mais dos ideais e dos interesses que os caracterizavam na Itália. Lá, o cristianismo, o "gótico" e a nobreza ainda impunham seu predomínio sobre os espíritos. O Humanismo adquiria uma preocupação cristã - voltada para o estudo crítico dos textos bíblicos - e o Renascimento adaptava-se a outros gostos e a outras exigências.

Assim era minha época - a época do Renascimento.

As mudanças que a sociedade atravessava tendiam a colocar o Homem no centro dos acontecimentos, individualizando-o na sociedade em que vivia. Uma época e uma sociedade que me permitiam afirmar - "Sou moderno, sou europeu!"

Um tempo e um espaço muito distintos daaqueles em que viviam os indígenas que nossos navegadores encontraram na América. Pela maneira como viviam, cada componente do grupo social só encontrava o seu lugar no conjunto de sua comunidade. Se eu tivesse comversado com um daqueles nativos, muito provavelmente ele me diria - "Somos da América".

Estávamos - indígenas e europeus - juntos no mesmo tempo cronológico. Estávamos separados, porém, no tempo da História.

Nós, europeus, éramos modernos, cantávamos nossos feitos, vivíamos na época do Renascimento e do Humanismo - mas fomos incapazes de compreender aquela separação.

E você, do século XXI?"

MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Edutel, 1977. p. 52-62.

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